domingo, 16 de junho de 2013

XIV Encontro Nacional da EPFCL - A Causa do Desejo e suas Errâncias

PRELÚDIO 1
A causa do desejo e suas errâncias
Eliane Z. Schermann

O tema do nosso próximo Encontro Nacional versa sobre a causa do desejo e sua errâncias. Se a filosofia em Spinoza define o desejo como “a própria essência do homem”, a psicanálise aborda o desejo como algo velado que se desvela na experiência da intencionalidade inconsciente. Esse tema é vasto e, se assim podemos dizer, devido à sua causa, o desejo vagueia em busca de um objeto de satisfação que, no entanto e paradoxalmente, está na própria causa. Daí usarmos o termo “errância”.
Para abordar inicialmente o tema, recorremos à clássica expressão freudiana “Wo Es War, Soll Ich Werden” traduzida por Lacan em “Onde o Isso era, deve o objeto advir”. Com esta expressão, Freud implica o “âmago do ser” no campo do Isso, por ele descrito como o “reservatório das pulsões”. 
Esse tema escolhido para o nosso próximo Encontro Nacional nos leva a considerar o objeto, não apenas implicado na demanda, sempre demanda de amor que se articula nos ditos, mas implicado no próprio desejo. O âmago do ser, lugar onde o objeto funciona como causa, se manifesta na metonímia do desejo relançando suas variações ficcionais a partir do encontro com uma fixidez, “fixão” sintomática balizada pela fantasia, dita por Lacan, de fundamental. Ao sujeito resta se deixar conduzir pelo que a ele se furta e do qual não pode escapar: o objeto da pulsão[1]. Este objeto é causa inefável e, ao mesmo tempo, fixidez, melhor dizendo, “fixão/ficção” instigante da metonímia do desejo.
O que se precipita de um desejo é correlato ao que resta do encontro da deriva da pulsão com um “escolho”. Neste ponto a causa se impõe ao desejo como um imponderável, um indizível. Enfim, deste lugar o desejo pode se traduzir em um dizer sobre a verdade inconsciente.
O pensamento inconsciente regido por uma lei de associação por simultaneidade[2]ou seja, pelo automatismo de repetição, segue as leis do deslocamento e de condensação da linguagem inconsciente. Na regularidade da lei prevalece a repetição de traços de memória do pensamento inconsciente submetidos ao princípio de continuidade/descontinuidade. Contudo, a noção de repetição não se esgota no automatismo da repetição; vai além dela e alcança uma suspensão da associação.
Apenas a partir dos anos 20, Freud descobre que, para além da repetição dos representantes da representação (termo freudiano equivalente ao significante, segundo Lacan), algo se revelava abruptamente por ser incondicional e atuante às cegas. Constata então que o irrepresentável, condição de toda representação, é o que convoca o desejo a se manifestar e a se precipitar em um além do prazer. O que essa outra vertente da repetição reitera é o incondicional da pulsão - Zwang. Não se trata mais apenas de um deciframento da repetição das representações inconscientes, mas sim, da insistência das cifras da repetição das contingências irrompendo do movimento e circuito pulsional.
A descoberta freudiana comprova o que Lacan afirma: “o inconsciente trabalha sem pensar, nem calcular, nem tampouco julgar, e que, ainda assim, o fruto está aí: um saber que se trata apenas de decifrar, já que ele consiste num ciframento”[3].
Teremos que avançar muitos aspectos da teoria e da experiência do inconsciente para falarmos da causa do desejo e suas errâncias. O curso do desejo faz o sujeito retornar às origens, a um lugar ignorado. O enigma desperta o desejo em direção à procura de um certo “saber possível” sobre as causas. Insistente, a causa nada mais é do que aquilo que faz o sujeito gozar na medida em que o inconsciente a determina.
Assim como Édipo é convocado pelo enigma sobre sua origem frente à Esfinge, “decifra-me ou te devoro”, o homem tem o dever ético de decidir entre o deciframento ou a morte. Desta “escolha forçada”, na qual o sujeito sempre perde algo qualquer que seja sua escolha, o sujeito pode se precipitar em algo novo. Se o deciframento sugere algo já perdido que insiste para ser “re-encontrado”, a cifra desta insistência visa produzir sentido e significância. Por outro lado, aquilo do qual o sujeito se furta (por ser perda) nada mais é do que a cifra de seu gozo repetitivo.
Ao tentar se furtar aos desígnios dos oráculos, o personagem central da tragédia de Sófocles, Édipo Rei, nos dá um exemplo da defesa do desejo presente em todo neurótico: “nada quer saber d’isso”. A tragédia da existência desse trágico herói comprova ter sido ele convocado pelo próprio “destino” a responder “aos desígnios dos deuses[4]” com uma “escolha forçada”. Fugindo de seu destino, ele acaba por se constatar na “obediência” a uma Lei que o compelia e o convocava a agir para desvelar o sentido de sua existência. Ao mesmo tempo, a Lei nele determinava uma interdição: a de gozar da mãe, sempre proibida. A castração por ele encarnada na cegueira, como castigo pelo desejo incestuoso, representa o preço pago por todo falante por padecer da linguagem e por ser desejante.
Regulado por uma Lei que mantém inter-dito o “gozo incestuoso”, o que prevalece no neurótico é um “nada saberás”, ou seja, o desejo inconsciente e recalcado. Contudo, deste lugar vazio de significação, uma insistência insidiosa porta ao corpo sexuado um traço distintivo e singular: o traço unário. Este traço é pura insistência que, por uma cifra de repetição, evoca o que no desejo e no sexo é repetida perda. Traduz a repetição de um “não há”, ou seja, “não há relação sexual”, não há encontro com “a cara-metade”. Há uma defasagem entre o que é visado pelo desejo e o que é encontrado. Neste “entre” a causa se produz e precipita o sujeito em ato a partir de sua divisão.
09/05/2013
[1] A natureza do desejo é a de reencontrar a ilusão de uma primeira experiência de satisfação em que o objeto é apenas uma miragem, ou seja, uma “alucinação”. O encontro com o objeto é então apenas o re-encontro com os traços do objeto que a memória tenta recuperar. As marcas da experiência de satisfação, regidas pelo princípio de prazer/desprazer e inscritas no aparelho psíquico pela excitação e pela tendência à redução de tensão do aparelho psíquico, confluem na própria definição freudiana dada ao “estado de desejo”. Freud define o “estado de desejo” pelos resíduos de percepção e de imagens mnêmicas do objeto. O objeto freudiano remete à noção de perda, à noção de desperdício. E, conseqüentemente, remete à sua recuperação (“alucinatória”) para ser possível conceber a produção de prazer ou de sofrimento.
[2] Ibid, p. 423.
[3] Lacan, J. – “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos”. Outros Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2003, p. 553.
[4] Lacan afirma primeiramente que “os deuses são inconscientes”, depois, que “os deuses são do real”. Considerando que o inconsciente, a partir do recalque e do “não é isso”, ou seja, da “negativa” freudiana , pode ser submetido ao deciframento, por outro lado, “é do próprio movimento do inconsciente que provém a redução do inconsciente à inconsciência, na qual o movimento da redução se furta por não poder medir-se pelo movimento como sua causa” (Lacan, Outros Escritos, “O engano do sujeito suposto saber”, 2003, p. 333). “Tudo o que é  inconsciente joga apenas com efeitos de linguagem

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