segunda-feira, 29 de agosto de 2011

III Encontro Internacional da Escola - Prelúdio 2


A singularidade e a “universidade” dos fins e das
consequências
O desafio dos AEs

Conrado Ramos - São Paulo


Das voltas aturdidas que um passante pode dar, podemos ler e ouvir
testemunhos de AEs que vão em dois sentidos: aqueles que, de um modo necessariamente singular, mas sempre contingente, transmitem uma volta não contada; e aqueles que, no meu entender, por uma razão estrutural, universalizam a volta a mais, tentando fazê-la contável por meio de medidas como o encontro da letra do próprio sintoma ou de ideias como o acesso ao real, medidas e ideias que não deveriam servir para isso.

Permitam-me uma pequena digressão sobre a função do enigma em
Lacan. Entendo que o enigma, como estrutura da interpretação – um saber como verdade –, tem como função um semi-dizer, e é um semi-dizer justamente porque um dito suprimiria o suspense da verdade que o enigma sustenta. No semi-dizer a verdade está suspensa. O dito, como sentido último, elimina a suspensão da verdade, que não é outra senão a da castração, ou noutros termos, a de que não há relação sexual. De um dito, proposição que ele é, pode ser dito V ou F. Mas e de um enigma? É por isso que uma interpretação que funciona como sentido suprime o suspense da verdade, isto é, responde mais pela via do não-saber da castração do que pela via da transmissão da castração. A interpretação do analista, enquanto enigma, repõe o suspense da verdade porque aponta para o furo do sentido, para a enunciação, e não para o sentido, para o enunciado.

A resposta a um enigma não pode se dar pela via do enunciado, pois
não é uma resposta lógica, do tipo V ou F, mas sim uma resposta ética. Não é uma resposta que se encontra, que se acessa, mas uma resposta que se faz, que se caracteriza por seu valor de ato diante do indecidível do sentido. Como diz Lacan sobre Édipo no Seminário 17: “no final, ocorre-lhe o seguinte, não é que a venda lhe caia dos olhos, são os olhos que lhe caem”2.

A resposta a um enigma, assim, pode ser pensada tanto na dimensão
do sicut palea (“são os olhos que lhe caem”) quanto pelo suposto encontro da resposta certa (“que a venda lhe caia dos olhos”). Mas o problema é que a suposição da resposta certa é da mesma ordem da dúvida atribuída por Pascal àquele que não aposta em Deus porque não tem fé, sem se dar conta de que é a aposta mesma que funda a fé, o que dá à aposta sua dimensão de ato. Daí cabe-nos perguntar: a resposta pelo encontro da resposta certa é mesmo uma resposta? Digo que não, para o que entendo como psicanálise. Lembremos o que Lacan diz no Seminário 23: “Só é verdadeiro o que tem sentido. Qual é a relação do real com o verdadeiro? O verdadeiro sobre o real, se assim posso me exprimir, é que o real [...] não tem sentido algum”3. Assim, penso que não se pode resolver o suspense de um saber no lugar da verdade sem apelar para o sentido. No entanto, “não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta”4.

Deste modo, como é que se pode encontrar a letra do sintoma? Soler
escreve sobre a letra do sintoma: “ela está implicada pelos efeitos
incalculáveis de lalíngua de onde resulta que tudo aquilo que se diga dessa letra é ‘elucubração’”5.

Diante dessa digressão, o enigma é um enunciado guardado no real?
É a letra que estava lá à espera e que, enfim, foi encontrada por uma análise que acessou o real? Trata-se de trazer o inconsciente à consciência? A análise é Aufklärung, é um dispositivo de esclarecimento? É claro que não é por aí que nos orientamos.

Na aula de 15 de março de 1977 do Seminário 24, Lacan diz que o
sintoma é real e que é mesmo a única coisa verdadeiramente real. Mas que isso quer dizer que o sintoma tem um sentido, que conserva um sentido no real. É por essa razão que uma análise pode, se tem esta chance, intervir simbolicamente para dissolvê-lo no real. Isso nos permite questionar se a letra não responde pelo que se pode dissolver do sentido no real, pelo que há de simbólico no real: uma letra no real do sintoma; uma letra, acontecimento de corpo (contingência, portanto), à qual se pode amarrar o afeto, que é enigmaticamente real.

Logicamente, uma letra no sintoma (ou para o sintoma) implica a
contingência: uma letra é possível; já a letra do sintoma nos remete ao
necessário: é aquela e não outra. Ontologicamente, uma letra no sintoma (ou para o sintoma) abre a dimensão do artifício, da mentira que é preciso dizer para fazer passar uma verdade; já a letra do sintoma se fecha num pressuposto naturalizante, substância prévia reificada, como uma pedra no rim que se precisa expelir. Semioticamente, talvez, convenha pensar a letra como Bedeutung (referência) do sintoma e não como Sinn (sentido) do
sintoma. Topologicamente, a letra verifica o furo do saber fazendo a borda pela qual o sintoma pode fazer eco no corpo, o que é diferente de tomar a letra como equivalente do sintoma. A letra não é o sintoma, mas pode servir de ponto fixo para o gozo do sintoma.

Das consequências do que exponho acima, coloco a importância
clínica da concepção topológica do falasser como forma de evitar a
pregnância de uma estrutura consistente na abordagem do furo do saber pela via da linguística, isto é, da oposição entre significação e carência de sentido. A topologia, assim como a matemática, permite-nos pensar numa estrutura da inconsistência (que a partir de Newton da Costa podemos chamar de paraconsistência), isto é, numa estrutura real. A linguagem não nos permite o mesmo, aprisionada que está à estrutura do simbólico. Diferentes concepções de estrutura produzem diferentes consequências clínicas, como exemplifica a diferença entre a ideia de acessar o real para encontrar lá a letra do sintoma (como uma estrutura consistente de elementos previamente dados) e intervir no real simbolicamente para dissolver um sentido no sintoma (como uma estrutura inconsistente e aberta para a contingência).

Podemos talvez entender que o insuportável do não acesso do Um
produzido em análise à verdade, ao saber como verdade do enigma (S2 // ß S1), faça girar o discurso do psicanalista, isto é, leve à colocação do próprio Um como verdade capaz de sustentar um saber: S2/S1. É o risco de dar ao Um uma universalidade e fazer do discurso universitário o sentido que falta ao discurso analítico.

Não estaria aí o liame estrutural das dificuldades que encontram os
passantes e os AEs na passagem da experiência do real à sua transmissão possível? Enquanto alguns não conseguem ecoar a transmissão do real, outros parecem cair na transmissão universitária que sistematiza todo o inconsciente (S2) e erguem um mundo sobre a falsa consistência da “letra do meu sintoma” (S1) tomada como ponto arquimediano. A ousadia de transmitir a experiência do real, ao requerer um sentido, descamba para a universalidade. Dessa ousadia, a implicação necessária é a de que só se pode sedimentar, com muito trabalho, algumas poucas pedrinhas, sobre as quais não se pode apoiar nenhuma alavanca.

Mas, onde localizar, então, topologicamente, um ponto fixo?

Em Televisão, Lacan nos lembra que os significantes de lalíngua são
pura cifra (sifr, do árabe, que é zero) o que quer dizer que eles não têm sentido algum, mas também que todo sentido possível é por eles produzido. Que uma letra de sintoma possa fazer sentido é justamente porque, se o sintoma é a resposta do falasser à foraclusão radical da relação sexual, ela – a letra – não tem sentido algum. Ela é uma formação do inconsciente, uma produção especial da análise com a qual se verifica o vazio de sentido, o furo de saber. Ela não é o sentido oculto que lá estava à espera do fim de análise. Ela não é o real.

Se tomarmos o Poordjeli de Leclaire como exemplo, que o coloquemos no que chamamos de inconsciente simbólico, é evidente que ele vai se revelar como a condensação máxima de todos os sentidos de uma vida, afinal, ele é o verdadeiro e o verdadeiro está do lado do sentido. Mas a verdade é mentirosa e um Poordjeli, portanto – e ao invés dele poderia ser todo um sistema de pensamento –, não passa de elucubração da lalíngua. Que o delírio generalizado que cada um constrói para si como suplência à foraclusão da relação sexual venha a caber numa palavra, esta não se torna, por isso, menos delirante. No entanto, se colocarmos o Poordjeli no que chamamos de inconsciente real, só aí vamos nos deparar com o que diz Lacan quanto ao verdadeiro sobre o real: o verdadeiro sobre o real é que o
real não tem sentido algum. Deste modo, tomar um Poordjeli como
condensação de sentido seria revirar o toro do simbólico sobre os outros dois, envelopando o imaginário e o real. Sobre isso diz Lacan na aula de 14 de dezembro de 1976 do Seminário 24: “O fato de que o imaginário e o real estejam, em suma, inteiramente incluídos em alguma coisa que é resultante da prática da própria psicanálise é alguma coisa que, que faz questão. Há, aliás, aí um problema. [...] É bem porque Freud, Freud insistia para que, ao menos os psicanalistas, refizessem aquilo que é chamado correntemente
dois cortes, quer dizer, fizessem uma segunda vez o corte que eu designo aqui como sendo o que, o que restaura o nó borromeano na sua forma original.”
É só ao tomar o Poordjeli pela via do real que podemos entender o real como um furo que cospe Uns, isto é, nomes, ou seja, puros denotativos, mas não conotativos.

Se o Poordejeli, aqui tomado como exemplo, é reversível, isto é, tem
função seja do lado do simbólico, seja do lado do sintoma, não é porque ele seja o sintoma. Ele tem a função de falo real, isto é, aponta para um enigmático sentido no real que, com alguma chance, uma análise pode enodar por meio da intervenção simbólica e, com isso, dissolver um sintoma.

Toda decifração deve se resumir, portanto, à cifra. Como diz Lacan
em A Terceira, este é o único exorcismo do qual é capaz a psicanálise. Que o sintoma seja o que não cessa de se escrever do real, é possível, entretanto, domá-lo até o ponto em que a linguagem possa fazer dele equívoco. Isto permite ganhar terreno sobre o sintoma, mesmo que ele não venha a se reduzir ao gozo fálico.

Do lado do simbólico, Poordjeli pode ser a transfusão de gozo do real
no simbólico (o que caracteriza a função do falo) – lembremos que o real no simbólico é a angústia 6. Mas aí ele se aproxima do que chamamos nomes-do-pai e, como diz Luis Izcovich, a angústia é dispor do nome-do-pai sem servir-se dele. Do lado do simbólico um Poordjeli serve, portanto, para nomear o desejo do Outro e esvaziar o real no simbólico. Daí o risco de uma preferência dada ao verdadeiro, ao que Lacan nos adverte que a psicanálise “é a forma moderna da fé, da fé religiosa. À deriva, eis onde está o verdadeiro quando se trata do real.” 7. Por isso, é preciso ir além do pai, isto é, levar à produção de um Poordjeli do lado do sintoma, que é a única coisa verdadeiramente real.
Se um Poordjeli pode ser o falo real, é a ele que cumpre a função de
verificar o furo, isto é, enodar duas consistências que, sem que ele se
produza, seguem soltas: o simbólico e o sintoma.

Daí a confusão clínica que costuma gerar sua reversibilidade. Mas,
vale notar, é somente por um Poordjeli poder ser, nesse nó que assim se constitui, uma reta infinita, que o furo pode se verificar: o furo não é ontologicamente anterior ao cuspe; é a cusparada do furo que gera o próprio elemento que faz o furo, pelo qual o furo se verifica. Um Poordjeli pode ser, portanto, o suporte material do furo, pois o furo é o que uma reta infinita faz no espaço.

E o que o furo cospe? Retas infinitas, nomes, Poordjelis . E o que fazer com esses elementos? Um ponto de apoio arquimediano ou uma reta infinita? Que haja em ambas as possibilidades o suporte de uma fixidez, enquanto uma serve para alavancar o mundo, a outra amarra uma borda; se uma envelopa, a outra enoda. O certo é que podemos extrair dos testemunhos de AEs um ensino sobre a reversibilidade tórica dos Poordjelis e de seus respectivos efeitos de identificação.

Julho de 2011


2 Seminário 17, p.114.
3 Seminário 23, p.112.
4 Outros escritos, p.567.
5 Wunsch 8, p.19.
6 Seminário 24, aula de 15/03/1977.
7 Seminário 24, aula de 14/12/1976.


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

ATIVIDADES DA SEMANA


ESPAÇO ESCOLA
Próxima reunião:
Quinta-feira, 22 de agosto, às 20h30.
Local: sede do FCL-Fortaleza

Neste semestre, nossos debates no Espaço Escola se darão em torno do tema do Terceiro Encontro Internacional da Escola - A análise, fins e consequências. 
Coordenação: Andrea Rodrigues
Horário: últimas quintas-feiras do mês, às 20h30
Atividade gratuita aberta ao público
O espírito do Encontro :
Durante três dias, em Paris, é-nos dada a oportunidade de reunir-nos e debater o tema decidido em Roma em julho 2010 : convite antes de mais para testemunhar, interrogar e desenvolver este tema de atualidade para nossa Escola que vem fazer escansão no trabalho de reflexão sobre a experiência do passe, depois de Roma e antes do Rio de Janeiro.
O interesse pelo tema e a sua acuidade impõem-se, tanto pela seriação da experiência como pelos resultados e com eles a abertura epistêmica introduzida pela « positivação do final da análise? a partir da satisfação final obtida, como afeto positivo de conclusão. Haverá que sintonizar os resultados e as opções. O Encontro será colocado sob o signo da experiência, experiência do passe vivida de ambos os lados do Atlântico e que prossegue há já uma década. Respeitando as particularidades históricas e analíticas locais e retomando as nossas opções, poderá resultar em uma melhor homogeneidade das práticas e das designações entre as zonas geográficas: condição sine qua non para que a experiência internacional da Escola siga produzindo um ensino vivo.
O tema permitirá, com o passe colocado no cerne da Escola, o exame das diversas modalidades de final produzidas e com as sequências, e avançar idéias que justifiquem o título acordado : há um período pós-passe que diz respeito à vida do passante, à Escola, e mais fundamentalmente à transformação da relação de cada um com a análise. (trecho da apresentação do Encontro, por Albert Nguyên)

                                                   ***
SEMINÁRIO DO CAMPO LACANIANO EM FORTALEZA

Esse Seminário, em seu quarto ano consecutivo, versará sobre o tema “ O desejo e sua interpretação”. A exemplo dos anos anteriores, essa atividade é coordenada pelo Fórum local em parceria com a gestão da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano- EPFCL-Brasil, que em compromisso com a formação teórica  de seus membros locais e com a comunidade psicanalítica na cidade, disponibiliza seus analistas membros da Escola para trabalhar textos de Freud e Lacan durante todo o ano.
Próximo Encontro:
27 de Agosto – Desejo do Analista e ato de final de análise - José Antonio, AME  da EPFCL – FCL Salvador
Local: Hotel Diogo
Horário: 9h às 11h e 14h às 17h
Informações: Graça Soares (9983-7373)

BIBLIOGRAFIA SUGERIDA
LACAN, Jacques. O Ato psicanalítico: O seminário, Livro 15 [1967-1968]. Inédito, Xerocopiado.
LACAN, Jacques. O Desejo e sua Interpretação. O Seminário, Livro 6 [1958-1959]. Publicação da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. 2002.
LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
FREITAS, Ida. Final de Análise: Decisão ou Ato? Coletânea: O Ato Psicanalítico. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2003.
SOLER, Colette. Que final para o analista? [1989]. In:_. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.
FREUD. Sigmund. Análise Terminável e Interminável [1937]. In:_. Edição standart brasileira das obras psicológicas completas. Tradução de Jaime Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v23.
SILVA, José Antonio Pereira. O Ato do final da análise. Coletânea: O Ato Psicanalítico. Salvador: Associação Científica Campo Psicanalítico, 2003.
SOLER, Colette. O que posso esperar...de uma psicanálise [1993]. In_. A psicanálise na civilização, Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.


sábado, 20 de agosto de 2011

III Encontro Internacional da Escola - Prelúdio 1





Prelúdio por um a posteriori (1)

Frédérique Decoin

 

A qualificação do psicanalista e a garantia de sua formação foram vetores, como evoca Danièle Sylvestre (Mensuel n°61, p.74), junto com a experiência da análise, do percurso de Lacan. Estas questões foram o fundamento da nossa Escola e elas não deixam de ser postas, em particular, no trabalho de implementação do dispositivo do passe que tenta recolher o testemunho de um passante, através dos passadores e um cartel, o traço de um ato que teria feito passar, esse passante, de analisante a analista. É unicamente, ou em todo caso mais rigorosamente, a partir deste ato e do testemunho que é a consequência, que pode funcionar uma garantia que não seja motivada pela pregnância narcísica e pela astúcia competitiva .
O ato a partir do qual pode operar essa garantia é correlacionado por Lacan ao início e ao fim da análise:

“Nossos pontos de junção, onde tem que operar nossos órgãos de garantia, são conhecidos: são o começo e o fim da psicanálise, como no xadrez. Por sorte, são eles os mais exemplares por sua estrutura...” (Lacan, Proposição de 9 de outubro de 1967, p.252, Outros escritos)

No início da análise é preciso um ato do analista para fazer passar o paciente, que então se torna analisante, ao discurso da histérica, e ao fim é preciso um ato do analisante para passar a analista. Mas qual fim se encontra colapsado a esse ato? Mais exatamente, o que é que se encontra concluído na precipitação do ato?
É certo que este ato marca o fim de algo, ele marca o fim da análise por isso? É ao "tempo lógico" (O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada, in Escritos) e à noção de "a posteriori", que Lacan faz referência ao tentar circunscrever o tempo do ato.

“A psicanálise em intensão, ou seja, a didática... Esquece-se, com efeito, sua pregnante razão de ser, que é constituir a psicanálise como uma experiência original, levá-la ao ponto em que figura a finitude, para permitir o a posteriori (...) essa experiência é essencial para isolá-la da terapêutica...” (Lacan, Proposição de 9 de outubro de 1967, p. 251, Outros escritos)

O que diz Lacan aqui nos esclarece sobre o fato de o fim correlacionado ao ato ser um fim que “permite o a posteriori’’ . Essa noção do a posteriori “próprio ao tempo lógico”, Lacan, ao fazer a releitura de Freud, fez dela uma noção essencial e ela aparece indissociável de sua reflexão sobre o ato analítico. Na “Proposição de 09 de outubro de 1967” ele abre sua reflexão sobre o ato freudiano a partir do artigo de Octave Mannoni, “L'analyse originelle”, e contradiz a idéia de que a writing-cure (Correspondência com Fliess entre 1887 e 1902) tenha se constituído como a análise original de Freud. Segundo ele, a verdadeira análise original foi a
“segunda”:

“Por constituir a repetição que da primeira faz um ato, pois é ela que introduz o a posteriori próprio do tempo lógico, que se marca pelo fato de que o psicanalisante passou à psicanalista”. (Lacan, Proposição de 9 de outubro de 1967, p. 258, Outros escritos ).

Segundo Michel Bousseyroux (L’appensée de Freud, in Mensuel n°3, 2004), a segunda e original análise de Freud se deu no tempo em que ele pensou a paranoia. Não foi o caso Schreber que teria aberto a ele o caminho conceitual, mas sim a consciência da paranoia de Fliess após a ruptura. Freud elabora a posteriori sua relação tranferencial com Fliess, e se distancia, quando começa a fazer uma série de sonhos "hipócritas", sonhos de reconciliação com seu “amigo deixado por um longo tempo.”

“Na quarta ou quinta vez, eu finalmente consegui entender o significado deste sonho. Ele (o sonho) me encorajou a deixar lá o que ficou em mim de consideração pela persona em questão, e me livrar dela completamente, o que ele tinha hipocritamente disfarçado como seu oposto”. (ver A interpretação dos sonhos)

A interpretação desses sonhos “depende da lógica do ato” (Bousseyroux, 2004) e vem concluir essa segunda análise. Freud se apressa em concluir que esse sonho não é um sonho de reconciliação, ele se apressa em concluir o tempo para compreender.

“Passado o tempo de compreender o momento para concluir, é o momento para concluir o tempo de compreender” (Lacan, O tempo lógico..., p.206, Escritos)

É na estrutura do a posteriori e da repetição que pode efetuar-se o momento de concluir. Assim, não foi somente porque Freud elabora a posteriori sua transferência com Fliess, mas também porque o sonho é pura repetição que Freud pode ser tomado pelo ato. Os conteúdos do sonho eram tão manifestadamente a repetição da transferência anterior com Fliess, transferência que tinha sido elucidada a posteriori, que Freud nada mais tinha a entender. Tudo que lhe restou a fazer com este sonho foi julgar. Ao julgar seu sonho, Freud faz um ato "o pensamento moderno tem mostrado que todo julgamento é essencialmente ato" (Lacan, O tempo lógico..., p.208, Escritos)
De certo modo, Freud, ao compreender que desse sonho nada há para compreender, responde. Além disso os verbos são de ação: ele "deixa lá" o resto de consideração, ele "se liberta"... Este julgamento que é um ato, nós o vemos, produziu seus efeitos, e aqui, neste caso particular, efeito de liberdade.

“Poder surgir das liberdades do fechamento de uma experiência, é isso que decorre da natureza do a posteriori na significância”. (Lacan, Proposição de 9 de outubro…, p. 261, Outros escritos)

O ato é produzido assim na estrutura do a posteriori e da repetição, e “no ponto de finitude” que ele representa, ele permite isso também. O a posteriori do ato, podemos dizer, o momento de concluir, seria então, talvez, a continuação lógica e verdadeira. Se o “fim da partida” não oferece um a posteriori podemos pensar que a continuação é então o tempo para compreender...
____________________________________

1 Nachträglichkeit é a palavra usada por Freud para conceber a temporalidade psíquica, e que pode ser traduzida pela expressão latina a posteriori ou pela expressão só-depois, como preferiu M.D. Magno (Nota do tradutor).

Tradução de Rosane Melo

terça-feira, 16 de agosto de 2011

XII Encontro Nacional da EPFCL-Brasil - Prelúdio 4



Textos Preliminares para o XII Encontro Nacional da EPFCL/AFCL – Brasil

PRELÚDIO 4

A RESPOSTA QUE CONVÉM AO ESTILO DO INCONSCIENTE

Dominique Fingermann

A interpretação é a resposta do analista, “a resposta que convém ao estilo do inconsciente”(1), condicionada pelo seu desejo, seu discurso, seu ato, operação que a ética do Bem-Dizer lhe outorga, em consequência de sua própria analise, ou seja, de uma “prática da tagarelice”(2), do blá-blá-blá. O que convém é que o psicanalista saiba operar a (na) transferência do começo ao fim; por isso é necessário “que ele saiba operar convenientemente, ou seja, que se dê conta do alcance das palavras para o seu analisante”(3). Por isso ele deve ele mesmo alcançar a diz-mensão poemática do dito, ou seja, a vivacidade do movimento pendular como descreve Paul Valéry(4) entre a “voz em ação” e “todos os valores significativos” constantemente permeados e renovados pela sua música, tal uma fonte cujo espetáculo é produzido por algo tão inapreensível e resoluto quanto a força da água e o cristal de seu respingar perpétuo.

Antes de tudo, é o analisante que interpreta, e por isso mesmo supõe no analista um parceiro, um complemento da interpretação que disparou precocemente o seu périplo subjetivo: alucinação da experiência de satisfação, teorias sexuais infantis, interpretação fantasmática do silêncio do Outro. O analisante interpreta, no fio da associação livre, ele tece o seu texto, bordado barroco em torno do litoral da letra, ele tece a textura das suas elucubrações, narrativa, mito, ficções, novela familiar, verdade mentirosa, o sentido transborda do furo do ab-sens, ab-sexo.

O analista pode “ajudar”, “colaborar” nessa tarefa – diz Lacan várias vezes –, as suas escansões, pontuações, “estimulam” a sua capacidade ficcional, a produção de significação via metáfora e metonímia. Mas o que ele vai qualificar como “interpretação” a partir do Seminário “O Ato psicanalítico” é mesmo uma entrada do analista, uma intrusão, que não se acumplicia com isso: o analisante costura, o analista corta.

Sabemos que Lacan deu diferentes formulações da interpretação que acompanharam as mudanças de sua apreensão do real da clínica; no entanto, o seu valor fundamental de corte persiste, e insiste, ao longo do seu ensino. Fundamentalmente é corte em relação à esperança transferencial, “o lugar de onde o psicanalista fala, não é o mesmo que aquele de onde está suposto falar na transferência”(5).

Embora Lacan precise que a interpretação limite o “pas de dialogue” (não há diálogo), ou seja, constitui certa “interlocução”, a intervenção do analista atualiza essencialmente a alteridade, a hiância, o hiato, o “pas de sens” (não sentido), o “não há relação sexual”, o gozo de Um sozinho. Ao longo da análise, esse corte tem efeito paradoxal de propiciar os passos de sentido (pas de sens), até que, ao cingir o impasse ao qual conduzem necessariamente os passos, o analisante consinta topar com o ab-sens, a falha original de sentido.

Que seja escansão da cadeia significante que revela a produção de significação do sujeito suposto, que seja intrusão, “imisção”, suplemento de significante, “ligar (ler) de um outro jeito”(6), que seja surpresa, equívoco, citação, enigma, poesia, todas as variantes da interpretação produzem um corte no sentido e na verdade, todas suspendem o SsS. Em geral, o analisante demora certo tempo antes de perceber que a intervenção do analista não completa a sua verdade, mas responde à verdade com o saber: a posição do inconsciente é resposta e responsabilidade do analista.

No Seminário XVI, Lacan diz que a interpretação responde à verdade, produzindo uma falha, que tem efeitos de saber, que torna sensível, apreensível “um saber primitivo”.

No Seminário XXII, ele precisa, dizendo que “a interpretação reverbera mais longe do que a fala”(7), “a interpretação repercute algo mais longe do que a fala”, ela “força aí outra coisa”, ela toca “a ex-sistencia de alíngua”.

O corte, portanto, não é simplesmente negativação dos ditos, pelo contrário, a interpretação silencia o sentido que sutura o inter-dito, para produzir, atualizar, no intervalo, o oco que permite que ressoe o eco do dizer: nesse sentido, Lacan valorizou em algum momento a intervenção “tu l’as dit!” (“Você o diz”, ou “o dito foi seu!”) como uma das melhores interpretações, pois ela corta a suposição de saber no outro (foi você que disse) e aponta que o dito não vai sem o dizer: o dito permite localizar e autentificar o lugar do dizer (“Ça ne va pas sans dire””). O corte da sessão produz igualmente esse mesmo efeito de esvaziamento do sentido e de ressonância do dizer: “Tu l’as dit!”.

A resposta do analista, a interpretação que convém ao estilo do inconsciente e conduz a análise até seu fim, tem consequências além do final da análise: quando, ao insucesso do sujeito suposto saber e da verdade mentirosa, responde o sucesso da repetição. Quando da repetição, foi destacado o Um, do Um-Dizer, ou seja, a sua potência de acontecimento poético, então, no meio da psicanálise, encontra-se o fim, encontro que ultrapassa as esperanças do encontro marcado com o sujeito suposto saber, encontrão de um “oco sempre futuro”, como diz Paul Valéry(8). É da solidão enquanto separação com o outro que pode emergir, irromper o amor e a criação. É do vazio da solidão radical do ser que a acontecência possa ter lugar: um oco proporcionando sempre o eco por vir.

O pour moi seul, à moi seul, en moi-même,
Auprès d'un cœur, aux sources du poème,
Entre le vide et l'événement pur,
J'attends l'écho de ma grandeur interne,
Amère, sombre, et sonore citerne,
Sonnant dans l'âme un creux toujours futur!


Ó só por mim, só de mim, em mim mesmo,
Junto a um coração, às fontes do poema,
Entre o vazio e o acontecimento puro,
Espero o eco de minha grandeza interna,
Amarga, escura e sonora cisterna,
Ressoando na alma um oco, sempre futuro!
__________________________________________________________


1 LACAN, Jacques. A psicanálise e seu ensino [1957] In: ____. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p.449.
2 LACAN, Jacques. Le moment de conclure (Le Séminaire XXV). Paris: Éditions de l’ALI. p.11.Inédito.
3 Id., ibid. “[...] Ce qu'il faudrait, c'est qu'il sache opérer convenablement, c'est-à-dire qu'il se rende compte de 1a portée des mots pour son analysant”. Tradução nossa.
4 VALERY, Paul. Variété. In : ____. Œuvres complètes. Paris: Gallimard (Pléiade). p. 1.332.
5 LACAN, Jacques. L’objet de la psychanalyse (Le Séminaire XIII). Paris: Version ALI (inédito). p.138 :“[...] La place d'où le psychanalyste parle n'est pas la même que celle d'où, dans le transfert, il est supposé parler”. Tradução nossa.
6 LACAN, Jacques. O ato psicanalítico (O Seminário XV). Inédito.
7 LACAN, Jacques. RSI (Le Séminaire XXII). Paris: Version ALI. p.78. Inédito: “[...] Il est certain qu'elle porte, l'interprétation analytique porte d'une façon qui va beaucoup plus loin que la parole”. Traduçao nossa.
8 VALÉRY, Paul. Le cimetière marin [1920] In : ____. La bibliothèque de poésie. Paris : Éditions France Loisirs, 2004. v.III, p.803.