sábado, 17 de dezembro de 2011

Um Encontro em Paris...


Como foi amplamente divulgado no nosso blog, de 9 a 11 do mês em curso ocorreu em Paris o III Encontro Internacional da Escola, com o tema A Análise, fins e consequências. Nossa colega do FCL-Fortaleza, Lia Silveira, esteve presente ao Encontro e nos trouxe um testemunho dos trabalhos e debates que presenciou por lá. 


Um encontro em Paris...
Pela pertinência  e importância dos assuntos debatidos durante o III Encontro internacional da Escola achei que seria interessante trazer meu testemunho do que pude ouvir durante esses dias em Paris. Não se trata de um relatório, tampouco uma transcrição do que ali se passou, mas, antes, algumas impressões e pontos que se destacaram na minha escuta singular. O encontro, como todos sabem, teve como tema “A análise, fins e conseqüências” (titulo que em francês abre espaço para um jogo de significantes pois “suites” pode significar tanto “consequências” como também “sequências, continuações”). De uma maneira geral quero dizer que o que mais se destacou para mim foi aquilo que penso poder chamar o caráter de “vivo” dos trabalhos e das discussões.
A primeira mesa que teve início na sexta de manhã girou em torno da questão do passador. Intitulada “O Discernimento do Passador” a mesa contou com a intervenção de Colette Soler e de quatro colegas que tiveram a experiência de integrar o dispositivo do passe como passadores. Colette Soler falou das “turbulências” que costumam fazer parte do processo de análise, mas também de como essas se distinguem da “turbulência” do que se passa no passe, trata-se de outra coisa. No início temos o que ela chama o “umbral da análise” marcado pelo estabelecimento da transferência. O efeito disso é uma “impulsão para as palavras” que motiva-se da própria estrutura da linguagem, da marca do traço unário. Deve-se levar em consideração que há aí um postulado de princípio, ou seja, o fato de que somos feito das palavras de terceiros, é a nossa “motiére”, que poderíamos traduzir “nossas palavras matéria”. É o amor ao saber que rege esse percurso, o analisante acreditando que é preciso falar, querendo colocar tudo em palavras na esperança de que possa aí encontrar alguma mudança. No entanto, a análise vai colocar em jogo exatamente a impossibilidade de tudo dizer,  quer dizer, coloca em jogo o Real.
O desenvolvimento feito por Soler nos mostra que Lacan não vai priorizar o sucesso e descartar o insucesso. Pelo contrario, ele vai situar nesse “insucesso” algo que é o kern da análise, o “para onde caminhamos” se levamos um pouco mais longe a experiência desse discurso específico que é o do analista. No final da análise o efeito de agálma que o analista exercia na transferência cai e o que resta é o “em si” do objeto em sua função de causa. Do lado do analisante inicia-se um trabalho de luto. Do lado do analista, fica o des-ser.
O real como causa que resta aí não é da ordem do sucesso, mas do “insuccsès”. Soler traz para falar disso uma homofonia entre “l’insuccsès” (o insucesso) e “l’insu qui sait” (algo como “o insabido que sabe”). Sabemos que aqui há uma alusão ao inconsciente como saber que não se sabe. Segundo Soler, na função do passador trata-se de fazer passar ao cartel do passe algo desse “insuccsès”. Ocorre que isso não se faz à maneira de quem conta uma história qualquer, mas coloca em jogo uma estrutura similar àquela do chiste (trait d'esprit) onde aquilo que é falado vai adquirir sua significação apenas em relação à um terceiro. O insucesso do encontro com o real não pode ser dito na estrutura estabelecida da linguagem, mas pode surgir como um dizer, ao subverter esta estrutura na condição de “trait d’esprit”.
Em seguida tivemos os testemunhos de algumas pessoas que atuaram como passadores e que puderam falar de como foi para elas essa experiência nos cartéis do passe que compuseram. Como falei antes, foram depoimentos muito vivos, como só é possível ser feito por alguém que realmente atravessou a experiência. Uma questão que sobrevoou todos os depoimentos foi sobre a decisão do analista de comunicar ou não o analisante acerca de sua designação para passador. Tivemos depoimentos das duas situações diferentes: uma delas só ficou sabendo de sua designação por ocasião do contato telefônico do passante, ou seja, não foi informada pelo analista. Para ela, foi importante o efeito de surpresa de se descobrir indicada e que isso teve para ela o valor de uma interpretação, levando-a a pensar sua própria solicitação de passe. Mas ela disse também que essa surpresa não foi de todo uma novidade, pois de alguma maneira já sentia que podia estar em condição de ser indicada. Num outro relato, a analisante foi informada antecipadamente pelo analista e isso, segundo ela, a deixou na situação de quem “espera um ônibus”.  Como demorou muito tempo entre ficar sabendo pelo analista e ser contatada por um passante (algo que poderia até mesmo nunca ocorrer) ela ficou com aquela sensação de esperar muito tempo e por isso não poder desistir de esperar: e se ele vier agora? Agora que já esperei tanto? Será que ainda vem? Enfim, no final das discussões penso que a constatação tendeu mais para não informar antecipadamente o analisante, para garantir que o efeito “surpresa” conduzisse mais sua atuação (ou seu ato), do que algo mais previamente pensado e elaborado”.
Foi discutido também a relação do passador com a identificação. Se por um lado, como disse Lacan ele “é o passe”, por outro lado, é preciso que ele se coloque no dispositivo mantendo uma certa distância em relação ao mesmo. O passador não pode ficar preso à idéia de que ele existe para garantir a transmissão. Não se trata de historiar tudo que o passante disse, mas tentar encontrar um fio condutor (un fil rouge) que permita construir o que o passador vai apresentar ao cartel do passe. Quinet destacou a diferença que há entre historizar a vida do passante e historizar a análise. É essa historização da análise o que vai importar no passe, onde se vai poder chegar ao ato analítico que possibilitou o advento do desejo do analista.
Outra questão que surgiu nessa mesa foi sobre a exigência ou não de o analisante indicado como passador ser membro da escola. Esse ponto dividiu opiniões. Alguns disseram que isso poderia impedir que analistas que tenham analisantes em condições de ser passadores não fossem indicados por não pertencerem a escola. Outros já disseram, que, mesmo que ele não seja membro da escola, precisa ter um mínimo de engajamento em relação a ela, pois como poderia ir falar para o cartel do passe sem ter a mínima noção do que é o passe e do que ele faz ali?
Finalizando os debates nesta mesa, alguns dos AMEs presentes ressaltaram a importância desses testemunhos e salientaram que essa discussão os ajudaria a indicar melhor os passadores.
À tarde foi a vez de se discutir a questão dos AMEs e a sua importância no dispositivo do passe. Se o passador “é” o passe, é o AME quem tem a importante função de indicar esse passador. Como saber se determinado analisante está num momento clínico que o permita ocupar esse lugar?  
O passe coloca consequências tanto para o analisante como para o analista. Algumas dessas conseqüência são (como Carmem Gallano chamou) íntimas, dizem respeito à própria análise do analisante. Outras são êxtimas, ou seja, dizem respeito à escola. Patrícia Munoz falou de algumas limitações que vivemos no nível da América Latina. O tempo que ainda não foi suficiente para que os membros mais antigos da Escola terminassem suas análises; a forma como foi feita indicação dos primeiros AMEs entre aqueles que já atuavam, embora alguns deles fossem ainda bem novos e com pouca experiência, pela necessidade de fazer funcionar os dispositivos da escola. Falou também da freqüência com que os analisantes precisam buscar outros países para terminar suas análises. Segundo ela, o AME precisa ser uma analista em condições de levar seus analisantes a um final de análise; designar passadores.
Chamo atenção nessa mesa para a fala de Bernard Nominé que conseguiu, com delicadeza e poesia, falar do “insuccès” que é o AME na escola, presentificando as limitações que essa posição implica, mas ao mesmo tempo destacando a imprescindibilidade do AME.
Ele começou dizendo que o titulo de AME foi uma concessão que Lacan fez ao modelo antigo, aquele em vigência na IPA. Algo tipo: “calma, não vamos subverter tudo. Há esse título de AME”. Mas segundo ele, a garantia da psicanálise não é o AME, e sim o passe. Há nesse titulo algo de uma “impostura” que precisa ser lembrada por aqueles que ocupam esse lugar. Ele fez uma brincadeira com uma piada dita por Grouxo Marx: “Eu não acreditaria num grupo que me aceitasse como um de seus membros”. O AME foi uma concessão necessária para fazer funcionar o dispositivo do passe: O AME é o sintoma da Escola.
Penso que essa localização do AME como sintoma da escola é especialmente interessante, pois, no discurso analítico, o sintoma, não se trata de eliminá-lo, mas sim de saber fazer com ele. Penso que ao final das discussões foi em torno disso que girou a questão acerca do lugar do AME na escola. Apesar de todos os problemas que temos com o AMEs, a escola não vai sem eles. É preciso, portanto, como disse Colette Soler, saber fazer com o que temos.
Nominé também levantou a importante questão de como podem se dar as indicações de novos AMEs.  Retoma o texto onde Lacan diz que os AMEs são os analistas praticantes que deram provas de formação suficiente. Nominé pergunta: mas que provas seriam essas? Poderíamos estabelecer critérios? Ele, por exemplo, diz que consideraria indicar um analista para AME quando esse analista fosse alguém a quem ele indicaria um colega ou um familiar que buscasse fazer análise. Outro ponto importante que ele coloca é a produção que esse analista desenvolve no âmbito da escola (trabalhos que apresenta nos encontros, etc.) pois isso levaria a animar a produção do saber na escola.
Falou-se também da existência de alguns analistas “endormis”, ou seja, adormecidos no trabalho da escola, pouco engajados, motivados. Esse ponto foi bastante debatido e retomado diversas vezes. (Noutro momento, Quinet ressaltou que o papel da escola não é vigiar quem está dormindo ou acordado, mas instigar o desejo para que o trabalho aconteça e não caia na sonolência.)
Por fim Nominé concluiu com uma belíssima metáfora para o AME como “alma”da escola (em Frances AME pode ser lido “âme”, que quer dizer “alma”). Ele diz que existe uma pecinha no violino, uma pecinha de madeira bem ordinária, segundo ele, que só é colocada no final da construção do instrumento. Ela fica meio escondida, lá dentro, mas é ela que é responsável por fazer o som ressoar por todo o aparelho. Essa pecinha se chama a “alma” do violino e é nesse sentido que o AME seria a ame/alma da escola.
Pra fechar o dia, pudemos ter uma “mostração” da beleza da alma desses instrumentos quando ouvimos uma suite tocada no violoncelo em homenagem a Lacan.
No sábado participei de uma manhã intensa de trabalhos dos quais quero ressaltar apenas um dos pontos abordados nas duas mesas: o que acontece com o desejo depois do fim de análise? O inconsciente deixa de existir? Os trabalhos de Marcelo Mazzuca e de Colette Soler trouxeram um bom material para pensar essas questões. Marcelo, através de um sonho pós-passe, mostrou como, para ele, foi o trabalho em Cartel que surgiu como lugar de trabalho na ausência de um Outro que responda. Pôr-se ao trabalho foi a saída que ele encontrou para se manter um “analista analisante”. Na discussão deste trabalho Colette Soler lembrou que não existe analisante sem objeto causa. Qual seria então a causa do analista pós análise? Para Marcelo é a escola quem está no lugar de causa para o “analista analisante” na transferência de trabalho, sendo que cada um inventa essa causa à sua maneira.
Por fim, achei importante falar do trabalho de Colette Soler intitulado “O fim, os fins”. Ela começa dizendo que o discurso do analista é o único que é opcional: “escolhe-se entrar nele”. Essa entrada supõe condições, aquelas relacionadas ao sujeito suposto saber. Ela diz que costuma-se formalizar entradas “padrão” em análise. Mas que pouco se formalizou sobre as saídas “padrão”. Ela diz que existe sim uma fase final que é mais ou menos padrão. Ela ocorre quando as respostas possíveis foram produzidas, quando a análise deu todos os frutos capazes de produzir. Existe o fruto terapêutico – alivio dos sintomas, mas existe também um fruto que ela chamou de “Didático”. O analisante que antes não sabia nada, agora sabe algo sobre si próprio. Mas isso ainda não é o fim. O fim vai se dar em relação a algo com que o analisante se confronta que é impossível saber. Em paralelo ao “eu não sei” da entrada, temos um “eu não posso saber” da saída.
Mas ela diz que há também os graus dessa experiência. Na análise não apenas escolhe-se entrar, mas também escolhe-se sair.  E nem todos optam por essa via. Existem, segundo ela:
1 – aqueles que saem da análise antes do final. Abandonam, desistem da análise antes que ela possa chegar ao que se chama de fim;
2 – aqueles que se recusam a sair. Ficam na satisfação da palavra. São aqueles que vão sugerir análise para todo mundo e que depois de trinta anos de análise continuam satisfeitos dizendo que se preciso ficam ali a vida toda;
3 – aqueles que encerram quando a análise realmente chega no final. Esses encerram a análise porque não querem mais sustentar a opção.
Ela diz ainda que alguns analisantes constroem durante a análise uma “fixão” (neologismo que conjuga ficção e fixação) de verdade e acham que chegaram ao final. O sujeito reconhece como se estrutura, sabe de sua fantasia. Mas ele confunde essa fixão com o seu real. Quando solicitam o passe vão lá para falar mais dessa verdade que construíram sobre si do que da “mentira da verdade”. Não conhecendo o fora de sentido da verdade estes analisantes tornam-se incrédulos do inconsciente real e, se interrompem a análise, é por desencanto ou cansaço. Se não precisassem ganhar o pão, diz ela, desistiriam até mesmo da clínica.
Essa escolha do fim depende das particularidades de cada analisante, da sua posição em relação ao real, à verdade e à ética. Essas particularidades, diz Soler, não devem ser buscadas na “natureza” de cada analisante. Mas sim nas relações que se estabelecem entre sintoma e gozo. A análise, diz ela, só se torna uma experiência realmente singular se levada até o seu fim.
Foi uma experiência realmente instigante que me deixou animada para o trabalho e contagiada pela vivacidade dos testemunhos que escutei.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

III Encontro Internacional da Escola - Mais Prelúdios


A TRANSMISSÃO DO CARTEL DO PASSE
Florencia Farias

Celebrar um novo encontro de Escola é a oportunidade para que circulem os fragmentos de saber que emergem das sucessivas passagens pelos dispositivos de Escola – Passe e Cartel – que albergam transitoriamente os sujeitos. É a oportunidade de uma avaliação da experiência realizada e uma formalização das dificuldades encontradas 
Devemos considerar o passe, sobretudo, como uma experiência de transmissão e investigação, que produz efeitos sobre o grupo e sobre cada um dos analistas da Escola, e também sobre a comunidade psicanalítica. Requer certa discrição, mas ao mesmo tempo abertura, é necessário transmiti-lo à comunidade.
O jogo discursivo que o passe instala na Escola nos convence de que a psicanálise vive e produz efeitos. Penso as diferentes partes que o conformam como um nó borromeano, cada parte depende da outra. Há uma pluralidade da experiência.
Não devemos esquecer que o testemunho dos passantes não totaliza a possível transmissão do passe na Escola, a responsabilidade de transmissão recai também nos passadores e nos integrantes dos cartéis do passe.  
Em relação a estes últimos acredito que é imprescindível que não haja passes mudos, é necessário que o cartel do passe diga de sua experiência até o limite do que pode dizer. Um efeito auspicioso em nossa Escola é que têm aumentado estes aportes e produções.
Participei da experiência de fazer parte de um cartel do passe faz pouco tempo, da qual posso dizer que foi uma experiência muito satisfatória e também de uma grande responsabilidade. O trabalho do cartel do passe é muito diferente de qualquer outra tarefa de Escola pela qual eu tenha passado e posso dizer que produz efeitos tanto no laço com a Escola, a teoria e também na clínica com os analisantes.
  O cartel é suporte de um lugar vazio, não é senhor, nem mestre. Mas, qual é a posição dos membros do cartel? Estão ali como analisantes ou como analistas?
Em seu trabalho se inscreve certo paradoxo: Os membros do cartel do passe se encarregam de investigar e, portanto por em questão a teoria mesma do final de análise implicada em sua decisão e ao mesmo tempo também devem decidir sobre as consequências de uma análise.
Devem dar por um lado lugar à singularidade de cada sujeito, de cada passe e por outro lado existe a impossibilidade de pensar uma decisão sobre um passe sem que esteja em jogo a teoria do fim da análise, a qual implica uma generalidade oposta à singularidade.
Se bem podemos dizer que a posição que mais convém aos membros do cartel é a de analisante, na perspectiva de oferecer sua escuta dessupondo-se do lugar do sujeito suposto saber, ao mesmo tempo se aproxima da posição do analista no ponto em que deve subtrair-se de seu próprio fantasma e suas restrições.
Em primeiro lugar deve ignorar que é um analista, para deixar-se ensinar pelo passante… mas, no entanto, ao mesmo tempo deve decidir se nomeia ou não tal ou qual passante. Então devemos advertir que o que se nomeia é algo singular, de cada passe. Também permite por em suspenso os saberes instituídos e desta maneira mantém a pergunta: O que se nomeia?
Isto concerne também ao saber que se espera ou não do AE. Dessa maneira, o AE será apenas uma função que funciona de modo singular e inesperado na Escola.
O testemunho do passante chega ao jurado sem voz, ou seja, advém uma forma de furo e então algo começa a passar, algo ressoa quando passa, se transforma em uma  caixa de ressonância. O nodal é o que o passante pode ensinar à psicanálise, o que a psicanálise pode aprender de seus testemunhos. Pode aprender de "o vivo" da experiencia do analisante.
O mais impactante para os membros do cartel é quando se obtém a transmissão pelos passantes “de um fragmento de real” a partir do qual parece jogar-se toda a existência. A pesar de tantos anos de historia, de anos de análise há testemunhos que permitem realizar uma redução muito impressionante de todo o discurso do sujeito a alguns elementos mínimos e princeps. O que é produto da redução operada em sua análise, mas também favorecida pela forma de transmissão indireta do pase que cada vez obriga mais a delimitar o relato, reduzindo-se ao final a un encontro breve entre o passador e o cartel.
O dispositivo é uma estrutura ficcional, necessária para que o Real da experiência analítica do passante se presentifique.
  Nomeia-se desde o Real que atinge o cartel, anunciando que mais além do saber constituído em discurso, a causa de desejo abre caminho como desejo do analista.
O passe aposta e orienta o real. A experiência do Passe põe em questionamento os tratamentos que conduzimos. Se há poucos pedidos de passe nos perguntamos se há finais de análise, nos interroga em que direção e até onde conduzimos as analises.
Que haja passante indica pelo menos, que houve análise. Obviamente o passe intervém sobre as análises e por tanto sobre cada um de nós, os analistas que conduzimos esses tratamentos.
O sujeito não só aprende como foi enredado pelo seu inconsciente, mas também que cada testemunho esclareceu o particular destino de seu ser sexuado, em um mundo donde o Real esta ali.
Se efetivamente no final da análise e no Passe se toca um fragmento de real, sua nova inscrição sempre será um acontecimento imprevisto.

Tradução de Maria Luisa Rodriguez Sant’Ana

BIBLIOGRAFÍA
Lacan J.1976, Intervenciones y textos 2, Prefacio a la edición inglesa del Seminario XI, Ed. Manantial
Lacan, J. Proposición del 9 de Octubre de 1967 sobre el Psicoanalista de la Escuela
Wunsch nº 10: Contribución de los Carteles del Pase, 2008-2010.



PROVA(S)[1] DE FIM

Irène Tu Ton

Para quem aí se engaja, a experiência psicanalítica é uma prova... até o fim?
Meu propósito diz respeito à clinica das neuroses.
Freud testemunhou de sua dificuldade de esclarecer o que seria um fim possível da cura analítica em “Análise finita, analise infinita” (1)
Lacan sublinha isso em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”(2) :
“O que o neurótico não quer, o que ele recusa encarniçadamente até o fim da análise, é sacrificar sua castração ao gozo do Outro (...) que não nos esqueçamos, não existe? Sim, mas se porventura existisse, gozaria com ela. E é isso que o neurótico não quer. Pois imagina que o Outro demanda da castração.”
Recusa feroz do neurótico até o fim! O preço a pagar é, então, na medida da recusa.
Engajamento na cura e recusa feroz parecem antinômicos, mas não, se considerarmos que o analisante deve se engajar a dar conta das coordenadas dessa recusa. E isso, conforme uma temporalidade que lhe é própria. “Precisa tempo”, declara Lacan em Radiofonia (3) a esse propósito. E ele especifica: “(...) é assim que o inconsciente se articula pelo que o ser vem ao dizer. ”(4). Abertura, fechamento do inconsciente, portanto.
Para o analista, trata-se de manter sempre em tensão o que de um dizer do analisando pode surgir. Isto supõe que ele não se deixe prender nas redes dos ditos, mesmo que tenham sido enunciados em toda a boa fé.
Para o analisando, crer em[2] seus ditos, quantas vezes (quanta fé)[3], de voltas, de ditos, desvios de ditos, bastante dito!? Não, ainda... desgastante. “(...) o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele” (5), nos diz Lacan a propósito de um gozo que seria outro, além do significante fálico. Maneira par  visar a parte desconhecida/não sabida que insiste e escapole, no centro da experiência analítica? Além da experiência de ser afetado, não poderíamos então dizer alguma coisa? Não teríamos nada a dizer?
Contudo, o dizer “faz nó” (6) entre os três registros (real, Simbólico, Imaginário). Descobrir que há algo de “inconsciente”, “coisas que fazem nó” (7) atrás dos ditos, pode ter um efeito paficicador sobre esse gozo outro, torná-lo suportável? Provação do divã... ou, às vezes, a idéia de por fim ao insuportável pode se confundir com a do fim da cura.
Então, dizer ou impossível de dizer?
Na análise, nem tudo do real é tratável pelo sentido. Colette Soler sublinha quanto ao inconsciente real (8) : “(...) nem tudo do real pode ser tratado pelo sentido. Então, ele (o analista) se guardará de pedir incessantemente mais um esforço para o sentido que, no final das contas , conduz ao impasse.”[4]
Uma questão se coloca: como posicionar o que, do real, não é tratável pelo sentido?
Considerando que o intratável é o que resiste, de qualquer maneira, na cura? Vimos há pouco que a resistência era um princípio mesmo da análise: recusa furiosa do neurótico até o fim, diz Lacan em 1960.
Não poderíamos nos orientar para uma outra definição que Lacan dá da resistência em 1976: “A miragem da verdade, da qual só se pode esperar a mentira (é a isso que se chama resistência, em termos polidos), não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise.”(9)
Seria este localização ai (aquele de uma verdade mentirosa) que poderia colocar um fim ao desfile de sentido, ao insaciável gozo-de-sentido? Mas então, como chegar ai?
A partir, talvez, daquilo que, justamente, depende da miragem e da ficção na análise e que faz tampão/rolha ao real, segundo uma definição de Lacan.
O fantasma dito fundamental? Na origem, era o fantasma... Aí procuramos respostas, pensamos ter achado provas a sustentar. Podemos nos apoiar aí por muito tempo. Dizemos ainda “travessia do fantasma”, tal uma experiência, uma travessia do deserto, pontuados de miragens? Miramos ai, muramos ai (fechamos)... e se... esperamos, esperança de uma verdade original, exagerada-mente. Uma verdade que tentamos cercar e que escapa, sempre.
Apreender a função de logro do fantasma (o que pode ser na ocasião de uma interpretação) tem um efeito singular sobre o analisante no sentido de um espanto, até mesmo de uma estranheza, tal o Unheimliche freudiano (inquietante estranheza). Pois o que estava revelado, dificilmente, até então, e ao qual se estava se familiarizando (heim = de casa). Pensando, enfim, ter encontrado lugar, apreende o que marca nossa diferença, esta singularidade mesma se revela equivocada.
Momento de vacilo. Um deslocamento se opera, sensível. Ele diz respeito ao lugar do sujeito no fantasma. Não se trata mais de perseguir verdades sobre si via o Outro, maneira de denunciá-lo como causa e, portanto, de fazê-lo consistir. Uma outra verdade aparece cujo sentido se impõe. Este revela um saber que não implica mais o outro no fantasma, mas somente sujeito e seu gozo. Revelação que, além disso, esclarece o papel centrar dado (sem o conhecimento do sujeito) ao Outro.
Pode-se disso encontrar-se aliviado, pois desatravancado do Outro, um movimento se cria contrastando com a fixidez do fantasma e percebemos, enfim, um término possível à análise. Mas podemos também ceder ao horror de saber e sermos pegos por aquilo que faz sintoma. Em alternância.
Todavia, essa experiência é inédita e faz ponto de ruptura na cura, pois ela enfoca aquilo que escapa, a parte de insabido que faz horror. Não seria isso que indica Lacan quando, depois de ter sublinhado o “modo constante” do fantasma, ele designa “o lugar que ele mantém para o sujeito” (10) que é a do real?
Segundo a hipótese, pode-se, então, dizer que flagrar a função de ficção do fantasma é um requisito necessário à conclusão da análise, enquanto ele dá a medida de um real como ponto de parada? A relação do sujeito com o sintoma daí se encontra logicamente afetada, ali está o intratável, o sintoma como resto sobre o qual ele topa.
Identificar-se ao seu sintoma e ficar satisfeito com isso (afeto assinando o fim da análise) supõe um outro passo que depende não da lógica, mas do particular.

Tradução de Glaucia Nagem
Revisão de Dominique Fingermann


NOTES
(1)           Freud, S. (1937). “Analyse finie, analyse infinie”, in Résultats, idées, problèmes II , Ed. Puf 1987, p. 231.
(2)           Lacan, J. (1960). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998, p. 841.
(3)           Lacan, J. (1970). “Radiofonia”, in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2003, p. 425.
(4)           Id., p. 426.
(5)           Lacan, J. (1972-73) O Seminário — Livro 20, mais, ainda. Rio de janeiro : Jorge Zahar Editor, 1985, p. 103.
(6)           Lacan (1974-75) Séminaire « RSI » Ed. de l’Association Freudienne Internationale, 2002, p.79
(7)           Ibid., p.79
(8)           C. Soler « Les affects lacaniens » Ed. Puf, 2011, p.147
(9)           Lacan (1976) in Autres écrits, « Préface à l’édition anglaise du séminaire XI », Ed. du Seuil, 2001, p.572
(10)        Lacan « La logique du fantasme. Compte rendu du Séminaire 1966-1967 », in Autres écrits, Ed. du Seuil 2001, p.326





[1] O título original e-preuve(s) joga com as acepções das palavras éprouver (experienciar) e prouver (provar). Em português não temos a possibilidade desse jogo de palavras. No entanto, etimologicamente a palavra “prova” pode ter o sentido de ensaiar, examinar, verificar, reconhecer por experiência, julgar, aprovar, demonstrar, provar. Assim, o título em português perde o jogo, mas mantém o duplo sentido de provar e reconhecer por experiência.
[2] No original: croire à. Em português não temos a possibilidade de traduzir como “crer à”. Segundo o dicionário Petit Robert, croire à é um tipo de crença por convicção, de um modo muito naïf. Em francês é usado para dizer da crença no Papai Noel (ex: Croire au père Noël); Lacan utiliza este modo de escrita, por exemplo, na Jornada de Cartéis de 1975 para dizer da relação de crença na psicanálise. Ele fala em “croire à Psychanalyse”.
[3] No original: combien de foi(s). A autora joga com dois sentidos possíveis ao incluir nos parênteses o “s”. A palavra foi significa “fé”, mas colocando o s no fim, ela passa a significar “vezes”. Assim, como não temos a possibilidade dessas duas formas escritas em português, a opção da tradução foi a de colocar as duas formas possíveis de leitura.
[4] Tradução livre, pois não existe até o momento uma versão deste livro em português.

sábado, 3 de dezembro de 2011

III Encontro Internacional da Escola - Prelúdios


A TAREFA ESSENCIAL
Trinidad Sanchez-Biezma de Lander

Podemos concordar depois de lançar um olhar ao movimento psicanalítico depois de Freud, que a psicanálise parece de um lado rebelde à institucionalização, e por outro que chegar a ser analista é um percurso que necessita da contribuição de muitos. Sem instituição podemos afirmar que não há analistas e tampouco psicanálise.
Toda instituição de psicanálise já se perguntou sobre os procedimentos de seleção, sobre as modalidades do ensino que transmite sobre o que capacita alguém a ser analista. Aqui e ali se deplora o continuísmo que reina e se fazem convocações à criatividade e à invenção. Permanentemente nos surgem as perguntas: por que os espíritos curiosos, por que os jovens investigadores que querem aprender algo novo (como dizia Freud de si mesmo), não vêm a nós?  E que é ensinar a psicanálise hoje em dia? ¿Quando ensinamos o que é da psicanálise? É nos nossos cursos, nossas conferências, nossos seminários, nossas comunicações, nossas exposições, ou será em nossas supervisões, ou ainda nas análises que conduzimos? (S. Askofare 2009).
Lacan diz que uma instituição não é analítica porque inclua entre seus membros didatas que fazem didática, mas sim porque nela tem lugar de fato análises didáticas e justamente a tarefa essencial da instituição é esclarecer, dizer como, de que forma se chegou ao fim dessas análises.
Tarefa essencial de que em seu seio tenham lugar de fato análises que resultam didáticas, única maneira de poder situar a psicanálise em relação com a ordem das ciências, mas também, para que as velhas estruturas hierárquicas possam ser substituídas por outras cujo funcionamento está centrado em torno do esclarecimento do que se produz no curso de uma análise, principalmente no que diz respeito à transição de analisante a analista.
É que fazer Escola tendo em jogo a transmissão é produzir um discurso de psicanálise em psicanálise. O que faz Escola não é o que a Escola produz no melhor estilo universitário, ou seja, não é aquilo que se repete porque está fascinada, não é esse material que a obtura porque a seduz e que como a moda, muda com a estação. O que faz Escola é a transmissão do que se faz na Escola, esse é seu destino.
Sabemos que para exercer a psicanálise é preciso ter passado pela experiência. A análise traça um caminho, um percurso necessário a transitar para que, aquele que entrou como analisante saia como analista (não - todos). Um percurso que se define pelo fato de que em seu momento nasce um desejo: o de retomar no nível do inconsciente de outro a experiência levada a cabo com o próprio inconsciente. E assim o desejo do analista é esse lugar do qual se está fora sem pensá-lo, mas desde estar nele, é ter saído de verdade, ou seja, não ter tomado esta saída senão como entrada; no entanto não é qualquer uma porque é a via do psicanalisante. (J.Lacan 1967).
Porque outra coisa se pode transmitir se não pelo testemunho de um desejo ancorado em uma experiência. O que o ato de transmissão põe em jogo não é um atropelo, mas antes um desejo, não é uma transgressão, mas esse conflito permanente entre a lei e a vida, sobre o qual já escrevia Kant, e que faz do homem um sujeito ético. O que se transmite é algo que não é palavra, é essa singularidade da palavra, ou seja aquilo que a funda e que por sua vez é indizível.
Enquanto que Freud mantém uma série interrogações sobre o caráter interminável da análise, e inclusive formula a necessidade de recomeçá-lo naqueles que se dedicam à prática psicanalítica, Lacan se decide a conceber a experiência como um itinerário que chega ao seu fim, um fim que não é arbitrário nem exterior à própria experiência, mas que brota como resultado dela, em uma conjuntura que essa dita experiência deve permitir localizar, e inclusive, transmitir. Um fim, além do mais, que não se resolve em uma totalidade que se realiza a si mesma.
A condição de sobrevivência da psicanálise e a garantia de que a Escola não se converta em um conservatório, é a capacidade de transmissão que comporta. Transmissão que cristaliza nas articulações do impossível de analisar, aí Lacan inventa o passe, dispositivo que mobiliza no sujeito em jogo o desejo justo, no ponto em que o amor não sustenta mais o impossível que insiste mais além. Mais além do muro do amor, só há o real. Trata-se de como arriscar-se da boa maneira para que haja analista, essa é a aposta.
Então, a formação dos analistas não requer uma organização onde desapareçam as diferenças entre as funções ou as responsabilidades a cargo de uns e de outros. Requer uma organização não direi onde isso fale, mas onde possa falar o sujeito que se considera advindo aí onde isso estava. Não existe, portanto formação psicanalítica possível, ali onde a instituição não cede a palavra a quem queira tomá-la para relatar seu nascimento a partir do que era sem sabê-lo. Por isso e não por outras razões Lacan inventa o passe. Dispositivo que permite não fixar o saber em uma doutrina, a fim de permitir que se desdobrem as invenções do inconsciente; de permitir testemunhar a cada um da verdade mentirosa, deixando aos cartéis a tarefa de reconhecer as condições de possibilidade do ato analítico que o passante não pode enunciar em termos de verdade. (C.Soler 2009).
Fazer escola não deve confundir-se então com proselitismo. Esse chamado ao outro não está dirigido a convencê-lo nem a filiá-lo a uma causa, mas a solicitar sua singularidade para arrancar ao real um resto de saber a mais.

Tradução de Maria Luisa Rodriguez Sant’Ana

Referencias bibliograficas
-S. Askofare 2010. Enseñanza del psicoanálisis ¿Cuáles son sus fines y sus efectos. Wunsch 8.
-J. Lacan 1967. Discurso a la EFP. Anuario de la Escuela.
-C Soler 2009. Las condiciones del acto ¿Cómo reconocerlas? Wunsch 8.


A PLACA SENSÍVEL: SUPORTE DE UMA ESCRITA
Rosa Roca

Sabe-se da câmara escura desde S.V a.C. e no século XVII se descobre o escurecimento de sais de prata (placa sensível), devido à luz, porém só no século XIX que Fox Talbot y Daguerre combinam ambos os conhecimentos para dar nascimento ao que Herschel chamou fotografia enfatizando o que a há de escrita na fotografia:  ortografia da luz. A placa sensível é o suporte de uma escrita, a escrita das imagens projetadas pela luz no fundo da câmera. Na câmara escura capta-se uma imagem, mas isso não é suficiente para sua escrita. É preciso situar ali a placa sensível que responde com sua sensibilidade.
Assim, quando Lacan se refere ao passador como placa sensível, enfatiza a dimensão escritural do passador. Como a placa sensível, o passador, transporta o que se escreve do testemunho do passante em sua sensibilidade de placa. Isso, é o que há de passar ao cartel. Se algo do dizer do passante se pode escrever é graças ao lugar que ocupa o passador no dispositivo do passe.
Desde que há sociedades de psicanálise há processos de recrutamento de candidatos analistas que participam das leis da competência que permitem funcionar os grupos. Quando Lacan propõe o Passe como o dispositivo de garantia que a Escola oferece para poder testemunhar do final de análise que conduz a passagem de psicanalisante à psicanalista, não propõe um modo de recrutamento de Analistas da Escola qualquer. O Passe não é apenas um instrumento de garantia na nomeação de AE, mas como dispositivo também está pensado para fazer avançar a psicanálise na resolução de seus problemas cruciais. O Passe não tem similaridade com a análise, nos diz Lacan. Sua finalidade é isolar o que concerne ao discurso analítico e sua particularidade está em consonância com a particularidade deste discurso. Dele entendo que no lugar de produção do discurso não está nem o mais-de-gozar, nem o sujeito, nem o saber, mas um (S1), um significante isolado de toda significação e que por isso pode dar suporte a uma escrita.
O que faz o Passe diferente e lhe dá sua essência, é a introdução de um terceiro elemento entre o candidato e o que julga sua idoneidade para aquele ao que se postula. Esse terceiro elemento é o passador, que não só separa e une pela primeira vez o passante e o jurado, mas possibilita que dos ditos do passante um dizer se escreva na placa sensível que ele é. Da mesma forma que a luz pode escrever imagens mediante um dispositivo fotográfico, os ditos podem escrever um dizer mediante o dispositivo do Passe, porque o dizer que fica  esquecido no que se diz encontra sua oportunidade neste dispositivo. Ao menos, creio, esta é a aposta de Lacan.
A função da placa sensível também a encontramos em Freud  com relação ao terceiro que é necessário para a realização de um chiste. Em Lacan isso não passou desapercebido, ele toma de Freud o apoio para fundar sua Proposição e nos diz: “Quem verá, pois, que minha proposição é formada a partir do modelo do chiste, do papel da ‘dritte person?’” (1)
Para Freud um chiste é uma criação em que uma idéia pré-consciente se expõe durante um momento aos procedimentos do inconsciente. O chiste deve ao inconsciente não tanto seu conteúdo como sua forma, forma que tem as características do processo primário. Então o chiste não é uma formação do inconsciente como um lapso. O chiste ganha a mão do inconsciente, e ao contrário do inconsciente no chiste há cálculo e pensamento. O processo não consiste em que o inconsciente não pensado passe a ser pensamento (impossível) senão que um pensamento inadequado, segundo o discurso comum, mergulha no processo inconsciente e emerge renovado. O chiste sempre faz vacilar os semblantes. O chiste, como o discurso analítico dá volta, em ato, o discurso do Mestre. No chiste se faz entrar por uma estreita porta, sem gasto psíquico algum, o que o discurso rejeitou por outra: o gozo.
Para a realização de um chiste são necessários três sujeitos:
O que o faz, o que é tomado como objeto e o terceiro, aquele em que se cumpre o propósito do chiste: a satisfação.
Que a finalidade do chiste se cumpra no terceiro é um assunto puramente econômico, já que, o que faz o chiste realiza um gasto psíquico que o impede a satisfação e por isso não ri. Se precisa de outro que possa gozar de seu trabalho de elaboração sem realizar nenhum gasto. Para isso é preciso que entre os dois sujeitos exista uma “comunidade psíquica”, não só para que o terceiro ria mas para que também ria o trabalhador que se apoia no terceiro como caixa de ressonância. O que se põe em jogo no chiste é a destituição de um Outro transformado em objeto de riso. Porém a destituição por si só não bastaria para produzir um chiste, pois o chiste é um processo social que não encontra seu fim mais que na recepção que encontra no outro que atua ali de placa sensível
Conduzido este modelo para o Passe, diremos que o primeiro sujeito é o passante que testemunha o momento de destituição do SsS, o segundo sujeito é o SsS (o inconsciente mentiroso ou a verdade mentirosa) que se toma como objeto. A segunda pessoa sempre é um Outro que se destitui, e a terceira pessoa é o passador.
Nos faltaria situar o cartel que tanto pode ser um desdobramento da terceira pessoa (o social) ou um retorno a instituição do SsS. Eu me inclinaria mais pelo último.
Para que o passador atue como placa sensível, como o terceiro do chiste, Lacan dá indicações de como deve ser escolhido: Deve ser escolhido entre os mais novos e não entre os mais renomados para evitar a arrogância e que se identifiquem com um lugar que não corresponde ao passador, o de SsS. E para alcançar o fim que se espera deles, para ser escolhido por seus analistas AME entre aqueles que estão em um momento de passe em sua análise, para que exista a “comunidade psíquica” necessária que o permita atuar de placa sensível e que essa sensibilidade seja adequada para receber a luz que permita escrever algo do dizer do passante que mais tarde será revelado no laboratório do cartel e emitido seu resultado para a comunidade de Escola.

                                                                                       Barcelona, Setembro de 2011

Tradução de Consuelo Pereira de Almeida

Notas:
(1) Lacan  J. Outres écrits. Discurso de la EFP, pág. 265. Ed. Seuil, Paris 2001

Bibliografía:
Freud S. Obras completas, El chiste y su relación con el inconsciente. Ed. Biblioteca nueva
Lacan J. Autres écrits. Ed.Seuil, París 2001
Lacan J. Momentos cruciales de la experiencia analítica. Ed. Manantial. Argentina1987
LacanJ. La Escuela. Ed. Manantial, Argentina 1989
Wunsch 8 (2010),9 (2010) y 10 (2011). Boletín internacional de la Escuela de Psicoanálisis de los Foros del Campo Lacaniano.