A TAREFA ESSENCIAL
Trinidad Sanchez-Biezma de Lander
Podemos concordar depois de lançar um olhar ao movimento psicanalítico depois de Freud, que a psicanálise parece de um lado rebelde à institucionalização, e por outro que chegar a ser analista é um percurso que necessita da contribuição de muitos. Sem instituição podemos afirmar que não há analistas e tampouco psicanálise.
Toda instituição de psicanálise já se perguntou sobre os procedimentos de seleção, sobre as modalidades do ensino que transmite sobre o que capacita alguém a ser analista. Aqui e ali se deplora o continuísmo que reina e se fazem convocações à criatividade e à invenção. Permanentemente nos surgem as perguntas: por que os espíritos curiosos, por que os jovens investigadores que querem aprender algo novo (como dizia Freud de si mesmo), não vêm a nós? E que é ensinar a psicanálise hoje em dia? ¿Quando ensinamos o que é da psicanálise? É nos nossos cursos, nossas conferências, nossos seminários, nossas comunicações, nossas exposições, ou será em nossas supervisões, ou ainda nas análises que conduzimos? (S. Askofare 2009).
Lacan diz que uma instituição não é analítica porque inclua entre seus membros didatas que fazem didática, mas sim porque nela tem lugar de fato análises didáticas e justamente a tarefa essencial da instituição é esclarecer, dizer como, de que forma se chegou ao fim dessas análises.
Tarefa essencial de que em seu seio tenham lugar de fato análises que resultam didáticas, única maneira de poder situar a psicanálise em relação com a ordem das ciências, mas também, para que as velhas estruturas hierárquicas possam ser substituídas por outras cujo funcionamento está centrado em torno do esclarecimento do que se produz no curso de uma análise, principalmente no que diz respeito à transição de analisante a analista.
É que fazer Escola tendo em jogo a transmissão é produzir um discurso de psicanálise em psicanálise. O que faz Escola não é o que a Escola produz no melhor estilo universitário, ou seja, não é aquilo que se repete porque está fascinada, não é esse material que a obtura porque a seduz e que como a moda, muda com a estação. O que faz Escola é a transmissão do que se faz na Escola, esse é seu destino.
Sabemos que para exercer a psicanálise é preciso ter passado pela experiência. A análise traça um caminho, um percurso necessário a transitar para que, aquele que entrou como analisante saia como analista (não - todos). Um percurso que se define pelo fato de que em seu momento nasce um desejo: o de retomar no nível do inconsciente de outro a experiência levada a cabo com o próprio inconsciente. E assim o desejo do analista é esse lugar do qual se está fora sem pensá-lo, mas desde estar nele, é ter saído de verdade, ou seja, não ter tomado esta saída senão como entrada; no entanto não é qualquer uma porque é a via do psicanalisante. (J.Lacan 1967).
Porque outra coisa se pode transmitir se não pelo testemunho de um desejo ancorado em uma experiência. O que o ato de transmissão põe em jogo não é um atropelo, mas antes um desejo, não é uma transgressão, mas esse conflito permanente entre a lei e a vida, sobre o qual já escrevia Kant, e que faz do homem um sujeito ético. O que se transmite é algo que não é palavra, é essa singularidade da palavra, ou seja aquilo que a funda e que por sua vez é indizível.
Enquanto que Freud mantém uma série interrogações sobre o caráter interminável da análise, e inclusive formula a necessidade de recomeçá-lo naqueles que se dedicam à prática psicanalítica, Lacan se decide a conceber a experiência como um itinerário que chega ao seu fim, um fim que não é arbitrário nem exterior à própria experiência, mas que brota como resultado dela, em uma conjuntura que essa dita experiência deve permitir localizar, e inclusive, transmitir. Um fim, além do mais, que não se resolve em uma totalidade que se realiza a si mesma.
A condição de sobrevivência da psicanálise e a garantia de que a Escola não se converta em um conservatório, é a capacidade de transmissão que comporta. Transmissão que cristaliza nas articulações do impossível de analisar, aí Lacan inventa o passe, dispositivo que mobiliza no sujeito em jogo o desejo justo, no ponto em que o amor não sustenta mais o impossível que insiste mais além. Mais além do muro do amor, só há o real. Trata-se de como arriscar-se da boa maneira para que haja analista, essa é a aposta.
Então, a formação dos analistas não requer uma organização onde desapareçam as diferenças entre as funções ou as responsabilidades a cargo de uns e de outros. Requer uma organização não direi onde isso fale, mas onde possa falar o sujeito que se considera advindo aí onde isso estava. Não existe, portanto formação psicanalítica possível, ali onde a instituição não cede a palavra a quem queira tomá-la para relatar seu nascimento a partir do que era sem sabê-lo. Por isso e não por outras razões Lacan inventa o passe. Dispositivo que permite não fixar o saber em uma doutrina, a fim de permitir que se desdobrem as invenções do inconsciente; de permitir testemunhar a cada um da verdade mentirosa, deixando aos cartéis a tarefa de reconhecer as condições de possibilidade do ato analítico que o passante não pode enunciar em termos de verdade. (C.Soler 2009).
Fazer escola não deve confundir-se então com proselitismo. Esse chamado ao outro não está dirigido a convencê-lo nem a filiá-lo a uma causa, mas a solicitar sua singularidade para arrancar ao real um resto de saber a mais.
Tradução de Maria Luisa Rodriguez Sant’Ana
Referencias bibliograficas
-S. Askofare 2010. Enseñanza del psicoanálisis ¿Cuáles son sus fines y sus efectos. Wunsch 8.
-J. Lacan 1967. Discurso a la EFP. Anuario de la Escuela.
-C Soler 2009. Las condiciones del acto ¿Cómo reconocerlas? Wunsch 8.
A PLACA SENSÍVEL: SUPORTE DE UMA ESCRITA
Rosa Roca
Sabe-se da câmara escura desde S.V a.C. e no século XVII se descobre o escurecimento de sais de prata (placa sensível), devido à luz, porém só no século XIX que Fox Talbot y Daguerre combinam ambos os conhecimentos para dar nascimento ao que Herschel chamou fotografia enfatizando o que a há de escrita na fotografia: ortografia da luz. A placa sensível é o suporte de uma escrita, a escrita das imagens projetadas pela luz no fundo da câmera. Na câmara escura capta-se uma imagem, mas isso não é suficiente para sua escrita. É preciso situar ali a placa sensível que responde com sua sensibilidade.
Assim, quando Lacan se refere ao passador como placa sensível, enfatiza a dimensão escritural do passador. Como a placa sensível, o passador, transporta o que se escreve do testemunho do passante em sua sensibilidade de placa. Isso, é o que há de passar ao cartel. Se algo do dizer do passante se pode escrever é graças ao lugar que ocupa o passador no dispositivo do passe.
Desde que há sociedades de psicanálise há processos de recrutamento de candidatos analistas que participam das leis da competência que permitem funcionar os grupos. Quando Lacan propõe o Passe como o dispositivo de garantia que a Escola oferece para poder testemunhar do final de análise que conduz a passagem de psicanalisante à psicanalista, não propõe um modo de recrutamento de Analistas da Escola qualquer. O Passe não é apenas um instrumento de garantia na nomeação de AE, mas como dispositivo também está pensado para fazer avançar a psicanálise na resolução de seus problemas cruciais. O Passe não tem similaridade com a análise, nos diz Lacan. Sua finalidade é isolar o que concerne ao discurso analítico e sua particularidade está em consonância com a particularidade deste discurso. Dele entendo que no lugar de produção do discurso não está nem o mais-de-gozar, nem o sujeito, nem o saber, mas um (S1), um significante isolado de toda significação e que por isso pode dar suporte a uma escrita.
O que faz o Passe diferente e lhe dá sua essência, é a introdução de um terceiro elemento entre o candidato e o que julga sua idoneidade para aquele ao que se postula. Esse terceiro elemento é o passador, que não só separa e une pela primeira vez o passante e o jurado, mas possibilita que dos ditos do passante um dizer se escreva na placa sensível que ele é. Da mesma forma que a luz pode escrever imagens mediante um dispositivo fotográfico, os ditos podem escrever um dizer mediante o dispositivo do Passe, porque o dizer que fica esquecido no que se diz encontra sua oportunidade neste dispositivo. Ao menos, creio, esta é a aposta de Lacan.
A função da placa sensível também a encontramos em Freud com relação ao terceiro que é necessário para a realização de um chiste. Em Lacan isso não passou desapercebido, ele toma de Freud o apoio para fundar sua Proposição e nos diz: “Quem verá, pois, que minha proposição é formada a partir do modelo do chiste, do papel da ‘dritte person?’” (1)
Para Freud um chiste é uma criação em que uma idéia pré-consciente se expõe durante um momento aos procedimentos do inconsciente. O chiste deve ao inconsciente não tanto seu conteúdo como sua forma, forma que tem as características do processo primário. Então o chiste não é uma formação do inconsciente como um lapso. O chiste ganha a mão do inconsciente, e ao contrário do inconsciente no chiste há cálculo e pensamento. O processo não consiste em que o inconsciente não pensado passe a ser pensamento (impossível) senão que um pensamento inadequado, segundo o discurso comum, mergulha no processo inconsciente e emerge renovado. O chiste sempre faz vacilar os semblantes. O chiste, como o discurso analítico dá volta, em ato, o discurso do Mestre. No chiste se faz entrar por uma estreita porta, sem gasto psíquico algum, o que o discurso rejeitou por outra: o gozo.
Para a realização de um chiste são necessários três sujeitos:
O que o faz, o que é tomado como objeto e o terceiro, aquele em que se cumpre o propósito do chiste: a satisfação.
Que a finalidade do chiste se cumpra no terceiro é um assunto puramente econômico, já que, o que faz o chiste realiza um gasto psíquico que o impede a satisfação e por isso não ri. Se precisa de outro que possa gozar de seu trabalho de elaboração sem realizar nenhum gasto. Para isso é preciso que entre os dois sujeitos exista uma “comunidade psíquica”, não só para que o terceiro ria mas para que também ria o trabalhador que se apoia no terceiro como caixa de ressonância. O que se põe em jogo no chiste é a destituição de um Outro transformado em objeto de riso. Porém a destituição por si só não bastaria para produzir um chiste, pois o chiste é um processo social que não encontra seu fim mais que na recepção que encontra no outro que atua ali de placa sensível
Conduzido este modelo para o Passe, diremos que o primeiro sujeito é o passante que testemunha o momento de destituição do SsS, o segundo sujeito é o SsS (o inconsciente mentiroso ou a verdade mentirosa) que se toma como objeto. A segunda pessoa sempre é um Outro que se destitui, e a terceira pessoa é o passador.
Nos faltaria situar o cartel que tanto pode ser um desdobramento da terceira pessoa (o social) ou um retorno a instituição do SsS. Eu me inclinaria mais pelo último.
Para que o passador atue como placa sensível, como o terceiro do chiste, Lacan dá indicações de como deve ser escolhido: Deve ser escolhido entre os mais novos e não entre os mais renomados para evitar a arrogância e que se identifiquem com um lugar que não corresponde ao passador, o de SsS. E para alcançar o fim que se espera deles, para ser escolhido por seus analistas AME entre aqueles que estão em um momento de passe em sua análise, para que exista a “comunidade psíquica” necessária que o permita atuar de placa sensível e que essa sensibilidade seja adequada para receber a luz que permita escrever algo do dizer do passante que mais tarde será revelado no laboratório do cartel e emitido seu resultado para a comunidade de Escola.
Barcelona, Setembro de 2011
Tradução de Consuelo Pereira de Almeida
Notas:
(1) Lacan J. Outres écrits. Discurso de la EFP, pág. 265. Ed. Seuil, Paris 2001
Bibliografía:
Freud S. Obras completas, El chiste y su relación con el inconsciente. Ed. Biblioteca nueva
Lacan J. Autres écrits. Ed.Seuil, París 2001
Lacan J. Momentos cruciales de la experiencia analítica. Ed. Manantial. Argentina1987
LacanJ. La Escuela. Ed. Manantial, Argentina 1989
Wunsch 8 (2010),9 (2010) y 10 (2011). Boletín internacional de la Escuela de Psicoanálisis de los Foros del Campo Lacaniano.
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