sábado, 17 de dezembro de 2011

Um Encontro em Paris...


Como foi amplamente divulgado no nosso blog, de 9 a 11 do mês em curso ocorreu em Paris o III Encontro Internacional da Escola, com o tema A Análise, fins e consequências. Nossa colega do FCL-Fortaleza, Lia Silveira, esteve presente ao Encontro e nos trouxe um testemunho dos trabalhos e debates que presenciou por lá. 


Um encontro em Paris...
Pela pertinência  e importância dos assuntos debatidos durante o III Encontro internacional da Escola achei que seria interessante trazer meu testemunho do que pude ouvir durante esses dias em Paris. Não se trata de um relatório, tampouco uma transcrição do que ali se passou, mas, antes, algumas impressões e pontos que se destacaram na minha escuta singular. O encontro, como todos sabem, teve como tema “A análise, fins e conseqüências” (titulo que em francês abre espaço para um jogo de significantes pois “suites” pode significar tanto “consequências” como também “sequências, continuações”). De uma maneira geral quero dizer que o que mais se destacou para mim foi aquilo que penso poder chamar o caráter de “vivo” dos trabalhos e das discussões.
A primeira mesa que teve início na sexta de manhã girou em torno da questão do passador. Intitulada “O Discernimento do Passador” a mesa contou com a intervenção de Colette Soler e de quatro colegas que tiveram a experiência de integrar o dispositivo do passe como passadores. Colette Soler falou das “turbulências” que costumam fazer parte do processo de análise, mas também de como essas se distinguem da “turbulência” do que se passa no passe, trata-se de outra coisa. No início temos o que ela chama o “umbral da análise” marcado pelo estabelecimento da transferência. O efeito disso é uma “impulsão para as palavras” que motiva-se da própria estrutura da linguagem, da marca do traço unário. Deve-se levar em consideração que há aí um postulado de princípio, ou seja, o fato de que somos feito das palavras de terceiros, é a nossa “motiére”, que poderíamos traduzir “nossas palavras matéria”. É o amor ao saber que rege esse percurso, o analisante acreditando que é preciso falar, querendo colocar tudo em palavras na esperança de que possa aí encontrar alguma mudança. No entanto, a análise vai colocar em jogo exatamente a impossibilidade de tudo dizer,  quer dizer, coloca em jogo o Real.
O desenvolvimento feito por Soler nos mostra que Lacan não vai priorizar o sucesso e descartar o insucesso. Pelo contrario, ele vai situar nesse “insucesso” algo que é o kern da análise, o “para onde caminhamos” se levamos um pouco mais longe a experiência desse discurso específico que é o do analista. No final da análise o efeito de agálma que o analista exercia na transferência cai e o que resta é o “em si” do objeto em sua função de causa. Do lado do analisante inicia-se um trabalho de luto. Do lado do analista, fica o des-ser.
O real como causa que resta aí não é da ordem do sucesso, mas do “insuccsès”. Soler traz para falar disso uma homofonia entre “l’insuccsès” (o insucesso) e “l’insu qui sait” (algo como “o insabido que sabe”). Sabemos que aqui há uma alusão ao inconsciente como saber que não se sabe. Segundo Soler, na função do passador trata-se de fazer passar ao cartel do passe algo desse “insuccsès”. Ocorre que isso não se faz à maneira de quem conta uma história qualquer, mas coloca em jogo uma estrutura similar àquela do chiste (trait d'esprit) onde aquilo que é falado vai adquirir sua significação apenas em relação à um terceiro. O insucesso do encontro com o real não pode ser dito na estrutura estabelecida da linguagem, mas pode surgir como um dizer, ao subverter esta estrutura na condição de “trait d’esprit”.
Em seguida tivemos os testemunhos de algumas pessoas que atuaram como passadores e que puderam falar de como foi para elas essa experiência nos cartéis do passe que compuseram. Como falei antes, foram depoimentos muito vivos, como só é possível ser feito por alguém que realmente atravessou a experiência. Uma questão que sobrevoou todos os depoimentos foi sobre a decisão do analista de comunicar ou não o analisante acerca de sua designação para passador. Tivemos depoimentos das duas situações diferentes: uma delas só ficou sabendo de sua designação por ocasião do contato telefônico do passante, ou seja, não foi informada pelo analista. Para ela, foi importante o efeito de surpresa de se descobrir indicada e que isso teve para ela o valor de uma interpretação, levando-a a pensar sua própria solicitação de passe. Mas ela disse também que essa surpresa não foi de todo uma novidade, pois de alguma maneira já sentia que podia estar em condição de ser indicada. Num outro relato, a analisante foi informada antecipadamente pelo analista e isso, segundo ela, a deixou na situação de quem “espera um ônibus”.  Como demorou muito tempo entre ficar sabendo pelo analista e ser contatada por um passante (algo que poderia até mesmo nunca ocorrer) ela ficou com aquela sensação de esperar muito tempo e por isso não poder desistir de esperar: e se ele vier agora? Agora que já esperei tanto? Será que ainda vem? Enfim, no final das discussões penso que a constatação tendeu mais para não informar antecipadamente o analisante, para garantir que o efeito “surpresa” conduzisse mais sua atuação (ou seu ato), do que algo mais previamente pensado e elaborado”.
Foi discutido também a relação do passador com a identificação. Se por um lado, como disse Lacan ele “é o passe”, por outro lado, é preciso que ele se coloque no dispositivo mantendo uma certa distância em relação ao mesmo. O passador não pode ficar preso à idéia de que ele existe para garantir a transmissão. Não se trata de historiar tudo que o passante disse, mas tentar encontrar um fio condutor (un fil rouge) que permita construir o que o passador vai apresentar ao cartel do passe. Quinet destacou a diferença que há entre historizar a vida do passante e historizar a análise. É essa historização da análise o que vai importar no passe, onde se vai poder chegar ao ato analítico que possibilitou o advento do desejo do analista.
Outra questão que surgiu nessa mesa foi sobre a exigência ou não de o analisante indicado como passador ser membro da escola. Esse ponto dividiu opiniões. Alguns disseram que isso poderia impedir que analistas que tenham analisantes em condições de ser passadores não fossem indicados por não pertencerem a escola. Outros já disseram, que, mesmo que ele não seja membro da escola, precisa ter um mínimo de engajamento em relação a ela, pois como poderia ir falar para o cartel do passe sem ter a mínima noção do que é o passe e do que ele faz ali?
Finalizando os debates nesta mesa, alguns dos AMEs presentes ressaltaram a importância desses testemunhos e salientaram que essa discussão os ajudaria a indicar melhor os passadores.
À tarde foi a vez de se discutir a questão dos AMEs e a sua importância no dispositivo do passe. Se o passador “é” o passe, é o AME quem tem a importante função de indicar esse passador. Como saber se determinado analisante está num momento clínico que o permita ocupar esse lugar?  
O passe coloca consequências tanto para o analisante como para o analista. Algumas dessas conseqüência são (como Carmem Gallano chamou) íntimas, dizem respeito à própria análise do analisante. Outras são êxtimas, ou seja, dizem respeito à escola. Patrícia Munoz falou de algumas limitações que vivemos no nível da América Latina. O tempo que ainda não foi suficiente para que os membros mais antigos da Escola terminassem suas análises; a forma como foi feita indicação dos primeiros AMEs entre aqueles que já atuavam, embora alguns deles fossem ainda bem novos e com pouca experiência, pela necessidade de fazer funcionar os dispositivos da escola. Falou também da freqüência com que os analisantes precisam buscar outros países para terminar suas análises. Segundo ela, o AME precisa ser uma analista em condições de levar seus analisantes a um final de análise; designar passadores.
Chamo atenção nessa mesa para a fala de Bernard Nominé que conseguiu, com delicadeza e poesia, falar do “insuccès” que é o AME na escola, presentificando as limitações que essa posição implica, mas ao mesmo tempo destacando a imprescindibilidade do AME.
Ele começou dizendo que o titulo de AME foi uma concessão que Lacan fez ao modelo antigo, aquele em vigência na IPA. Algo tipo: “calma, não vamos subverter tudo. Há esse título de AME”. Mas segundo ele, a garantia da psicanálise não é o AME, e sim o passe. Há nesse titulo algo de uma “impostura” que precisa ser lembrada por aqueles que ocupam esse lugar. Ele fez uma brincadeira com uma piada dita por Grouxo Marx: “Eu não acreditaria num grupo que me aceitasse como um de seus membros”. O AME foi uma concessão necessária para fazer funcionar o dispositivo do passe: O AME é o sintoma da Escola.
Penso que essa localização do AME como sintoma da escola é especialmente interessante, pois, no discurso analítico, o sintoma, não se trata de eliminá-lo, mas sim de saber fazer com ele. Penso que ao final das discussões foi em torno disso que girou a questão acerca do lugar do AME na escola. Apesar de todos os problemas que temos com o AMEs, a escola não vai sem eles. É preciso, portanto, como disse Colette Soler, saber fazer com o que temos.
Nominé também levantou a importante questão de como podem se dar as indicações de novos AMEs.  Retoma o texto onde Lacan diz que os AMEs são os analistas praticantes que deram provas de formação suficiente. Nominé pergunta: mas que provas seriam essas? Poderíamos estabelecer critérios? Ele, por exemplo, diz que consideraria indicar um analista para AME quando esse analista fosse alguém a quem ele indicaria um colega ou um familiar que buscasse fazer análise. Outro ponto importante que ele coloca é a produção que esse analista desenvolve no âmbito da escola (trabalhos que apresenta nos encontros, etc.) pois isso levaria a animar a produção do saber na escola.
Falou-se também da existência de alguns analistas “endormis”, ou seja, adormecidos no trabalho da escola, pouco engajados, motivados. Esse ponto foi bastante debatido e retomado diversas vezes. (Noutro momento, Quinet ressaltou que o papel da escola não é vigiar quem está dormindo ou acordado, mas instigar o desejo para que o trabalho aconteça e não caia na sonolência.)
Por fim Nominé concluiu com uma belíssima metáfora para o AME como “alma”da escola (em Frances AME pode ser lido “âme”, que quer dizer “alma”). Ele diz que existe uma pecinha no violino, uma pecinha de madeira bem ordinária, segundo ele, que só é colocada no final da construção do instrumento. Ela fica meio escondida, lá dentro, mas é ela que é responsável por fazer o som ressoar por todo o aparelho. Essa pecinha se chama a “alma” do violino e é nesse sentido que o AME seria a ame/alma da escola.
Pra fechar o dia, pudemos ter uma “mostração” da beleza da alma desses instrumentos quando ouvimos uma suite tocada no violoncelo em homenagem a Lacan.
No sábado participei de uma manhã intensa de trabalhos dos quais quero ressaltar apenas um dos pontos abordados nas duas mesas: o que acontece com o desejo depois do fim de análise? O inconsciente deixa de existir? Os trabalhos de Marcelo Mazzuca e de Colette Soler trouxeram um bom material para pensar essas questões. Marcelo, através de um sonho pós-passe, mostrou como, para ele, foi o trabalho em Cartel que surgiu como lugar de trabalho na ausência de um Outro que responda. Pôr-se ao trabalho foi a saída que ele encontrou para se manter um “analista analisante”. Na discussão deste trabalho Colette Soler lembrou que não existe analisante sem objeto causa. Qual seria então a causa do analista pós análise? Para Marcelo é a escola quem está no lugar de causa para o “analista analisante” na transferência de trabalho, sendo que cada um inventa essa causa à sua maneira.
Por fim, achei importante falar do trabalho de Colette Soler intitulado “O fim, os fins”. Ela começa dizendo que o discurso do analista é o único que é opcional: “escolhe-se entrar nele”. Essa entrada supõe condições, aquelas relacionadas ao sujeito suposto saber. Ela diz que costuma-se formalizar entradas “padrão” em análise. Mas que pouco se formalizou sobre as saídas “padrão”. Ela diz que existe sim uma fase final que é mais ou menos padrão. Ela ocorre quando as respostas possíveis foram produzidas, quando a análise deu todos os frutos capazes de produzir. Existe o fruto terapêutico – alivio dos sintomas, mas existe também um fruto que ela chamou de “Didático”. O analisante que antes não sabia nada, agora sabe algo sobre si próprio. Mas isso ainda não é o fim. O fim vai se dar em relação a algo com que o analisante se confronta que é impossível saber. Em paralelo ao “eu não sei” da entrada, temos um “eu não posso saber” da saída.
Mas ela diz que há também os graus dessa experiência. Na análise não apenas escolhe-se entrar, mas também escolhe-se sair.  E nem todos optam por essa via. Existem, segundo ela:
1 – aqueles que saem da análise antes do final. Abandonam, desistem da análise antes que ela possa chegar ao que se chama de fim;
2 – aqueles que se recusam a sair. Ficam na satisfação da palavra. São aqueles que vão sugerir análise para todo mundo e que depois de trinta anos de análise continuam satisfeitos dizendo que se preciso ficam ali a vida toda;
3 – aqueles que encerram quando a análise realmente chega no final. Esses encerram a análise porque não querem mais sustentar a opção.
Ela diz ainda que alguns analisantes constroem durante a análise uma “fixão” (neologismo que conjuga ficção e fixação) de verdade e acham que chegaram ao final. O sujeito reconhece como se estrutura, sabe de sua fantasia. Mas ele confunde essa fixão com o seu real. Quando solicitam o passe vão lá para falar mais dessa verdade que construíram sobre si do que da “mentira da verdade”. Não conhecendo o fora de sentido da verdade estes analisantes tornam-se incrédulos do inconsciente real e, se interrompem a análise, é por desencanto ou cansaço. Se não precisassem ganhar o pão, diz ela, desistiriam até mesmo da clínica.
Essa escolha do fim depende das particularidades de cada analisante, da sua posição em relação ao real, à verdade e à ética. Essas particularidades, diz Soler, não devem ser buscadas na “natureza” de cada analisante. Mas sim nas relações que se estabelecem entre sintoma e gozo. A análise, diz ela, só se torna uma experiência realmente singular se levada até o seu fim.
Foi uma experiência realmente instigante que me deixou animada para o trabalho e contagiada pela vivacidade dos testemunhos que escutei.

2 comentários:

Andrea Brunetto disse...

Lia, muito obrigada pelo seu texto sobre o Encontro de Paris. Para quem não pôde estar lá, ler esse panorama que você fez foi muito bom.
Andréa

Lia Silveira disse...

Não tem de que Andrea...foi um prazer escrever, pois voltei muito empolgada de lá. Abraços. Lia