segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

III Encontro Internacional da Escola - Mais Prelúdios


A TRANSMISSÃO DO CARTEL DO PASSE
Florencia Farias

Celebrar um novo encontro de Escola é a oportunidade para que circulem os fragmentos de saber que emergem das sucessivas passagens pelos dispositivos de Escola – Passe e Cartel – que albergam transitoriamente os sujeitos. É a oportunidade de uma avaliação da experiência realizada e uma formalização das dificuldades encontradas 
Devemos considerar o passe, sobretudo, como uma experiência de transmissão e investigação, que produz efeitos sobre o grupo e sobre cada um dos analistas da Escola, e também sobre a comunidade psicanalítica. Requer certa discrição, mas ao mesmo tempo abertura, é necessário transmiti-lo à comunidade.
O jogo discursivo que o passe instala na Escola nos convence de que a psicanálise vive e produz efeitos. Penso as diferentes partes que o conformam como um nó borromeano, cada parte depende da outra. Há uma pluralidade da experiência.
Não devemos esquecer que o testemunho dos passantes não totaliza a possível transmissão do passe na Escola, a responsabilidade de transmissão recai também nos passadores e nos integrantes dos cartéis do passe.  
Em relação a estes últimos acredito que é imprescindível que não haja passes mudos, é necessário que o cartel do passe diga de sua experiência até o limite do que pode dizer. Um efeito auspicioso em nossa Escola é que têm aumentado estes aportes e produções.
Participei da experiência de fazer parte de um cartel do passe faz pouco tempo, da qual posso dizer que foi uma experiência muito satisfatória e também de uma grande responsabilidade. O trabalho do cartel do passe é muito diferente de qualquer outra tarefa de Escola pela qual eu tenha passado e posso dizer que produz efeitos tanto no laço com a Escola, a teoria e também na clínica com os analisantes.
  O cartel é suporte de um lugar vazio, não é senhor, nem mestre. Mas, qual é a posição dos membros do cartel? Estão ali como analisantes ou como analistas?
Em seu trabalho se inscreve certo paradoxo: Os membros do cartel do passe se encarregam de investigar e, portanto por em questão a teoria mesma do final de análise implicada em sua decisão e ao mesmo tempo também devem decidir sobre as consequências de uma análise.
Devem dar por um lado lugar à singularidade de cada sujeito, de cada passe e por outro lado existe a impossibilidade de pensar uma decisão sobre um passe sem que esteja em jogo a teoria do fim da análise, a qual implica uma generalidade oposta à singularidade.
Se bem podemos dizer que a posição que mais convém aos membros do cartel é a de analisante, na perspectiva de oferecer sua escuta dessupondo-se do lugar do sujeito suposto saber, ao mesmo tempo se aproxima da posição do analista no ponto em que deve subtrair-se de seu próprio fantasma e suas restrições.
Em primeiro lugar deve ignorar que é um analista, para deixar-se ensinar pelo passante… mas, no entanto, ao mesmo tempo deve decidir se nomeia ou não tal ou qual passante. Então devemos advertir que o que se nomeia é algo singular, de cada passe. Também permite por em suspenso os saberes instituídos e desta maneira mantém a pergunta: O que se nomeia?
Isto concerne também ao saber que se espera ou não do AE. Dessa maneira, o AE será apenas uma função que funciona de modo singular e inesperado na Escola.
O testemunho do passante chega ao jurado sem voz, ou seja, advém uma forma de furo e então algo começa a passar, algo ressoa quando passa, se transforma em uma  caixa de ressonância. O nodal é o que o passante pode ensinar à psicanálise, o que a psicanálise pode aprender de seus testemunhos. Pode aprender de "o vivo" da experiencia do analisante.
O mais impactante para os membros do cartel é quando se obtém a transmissão pelos passantes “de um fragmento de real” a partir do qual parece jogar-se toda a existência. A pesar de tantos anos de historia, de anos de análise há testemunhos que permitem realizar uma redução muito impressionante de todo o discurso do sujeito a alguns elementos mínimos e princeps. O que é produto da redução operada em sua análise, mas também favorecida pela forma de transmissão indireta do pase que cada vez obriga mais a delimitar o relato, reduzindo-se ao final a un encontro breve entre o passador e o cartel.
O dispositivo é uma estrutura ficcional, necessária para que o Real da experiência analítica do passante se presentifique.
  Nomeia-se desde o Real que atinge o cartel, anunciando que mais além do saber constituído em discurso, a causa de desejo abre caminho como desejo do analista.
O passe aposta e orienta o real. A experiência do Passe põe em questionamento os tratamentos que conduzimos. Se há poucos pedidos de passe nos perguntamos se há finais de análise, nos interroga em que direção e até onde conduzimos as analises.
Que haja passante indica pelo menos, que houve análise. Obviamente o passe intervém sobre as análises e por tanto sobre cada um de nós, os analistas que conduzimos esses tratamentos.
O sujeito não só aprende como foi enredado pelo seu inconsciente, mas também que cada testemunho esclareceu o particular destino de seu ser sexuado, em um mundo donde o Real esta ali.
Se efetivamente no final da análise e no Passe se toca um fragmento de real, sua nova inscrição sempre será um acontecimento imprevisto.

Tradução de Maria Luisa Rodriguez Sant’Ana

BIBLIOGRAFÍA
Lacan J.1976, Intervenciones y textos 2, Prefacio a la edición inglesa del Seminario XI, Ed. Manantial
Lacan, J. Proposición del 9 de Octubre de 1967 sobre el Psicoanalista de la Escuela
Wunsch nº 10: Contribución de los Carteles del Pase, 2008-2010.



PROVA(S)[1] DE FIM

Irène Tu Ton

Para quem aí se engaja, a experiência psicanalítica é uma prova... até o fim?
Meu propósito diz respeito à clinica das neuroses.
Freud testemunhou de sua dificuldade de esclarecer o que seria um fim possível da cura analítica em “Análise finita, analise infinita” (1)
Lacan sublinha isso em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”(2) :
“O que o neurótico não quer, o que ele recusa encarniçadamente até o fim da análise, é sacrificar sua castração ao gozo do Outro (...) que não nos esqueçamos, não existe? Sim, mas se porventura existisse, gozaria com ela. E é isso que o neurótico não quer. Pois imagina que o Outro demanda da castração.”
Recusa feroz do neurótico até o fim! O preço a pagar é, então, na medida da recusa.
Engajamento na cura e recusa feroz parecem antinômicos, mas não, se considerarmos que o analisante deve se engajar a dar conta das coordenadas dessa recusa. E isso, conforme uma temporalidade que lhe é própria. “Precisa tempo”, declara Lacan em Radiofonia (3) a esse propósito. E ele especifica: “(...) é assim que o inconsciente se articula pelo que o ser vem ao dizer. ”(4). Abertura, fechamento do inconsciente, portanto.
Para o analista, trata-se de manter sempre em tensão o que de um dizer do analisando pode surgir. Isto supõe que ele não se deixe prender nas redes dos ditos, mesmo que tenham sido enunciados em toda a boa fé.
Para o analisando, crer em[2] seus ditos, quantas vezes (quanta fé)[3], de voltas, de ditos, desvios de ditos, bastante dito!? Não, ainda... desgastante. “(...) o testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele” (5), nos diz Lacan a propósito de um gozo que seria outro, além do significante fálico. Maneira par  visar a parte desconhecida/não sabida que insiste e escapole, no centro da experiência analítica? Além da experiência de ser afetado, não poderíamos então dizer alguma coisa? Não teríamos nada a dizer?
Contudo, o dizer “faz nó” (6) entre os três registros (real, Simbólico, Imaginário). Descobrir que há algo de “inconsciente”, “coisas que fazem nó” (7) atrás dos ditos, pode ter um efeito paficicador sobre esse gozo outro, torná-lo suportável? Provação do divã... ou, às vezes, a idéia de por fim ao insuportável pode se confundir com a do fim da cura.
Então, dizer ou impossível de dizer?
Na análise, nem tudo do real é tratável pelo sentido. Colette Soler sublinha quanto ao inconsciente real (8) : “(...) nem tudo do real pode ser tratado pelo sentido. Então, ele (o analista) se guardará de pedir incessantemente mais um esforço para o sentido que, no final das contas , conduz ao impasse.”[4]
Uma questão se coloca: como posicionar o que, do real, não é tratável pelo sentido?
Considerando que o intratável é o que resiste, de qualquer maneira, na cura? Vimos há pouco que a resistência era um princípio mesmo da análise: recusa furiosa do neurótico até o fim, diz Lacan em 1960.
Não poderíamos nos orientar para uma outra definição que Lacan dá da resistência em 1976: “A miragem da verdade, da qual só se pode esperar a mentira (é a isso que se chama resistência, em termos polidos), não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise.”(9)
Seria este localização ai (aquele de uma verdade mentirosa) que poderia colocar um fim ao desfile de sentido, ao insaciável gozo-de-sentido? Mas então, como chegar ai?
A partir, talvez, daquilo que, justamente, depende da miragem e da ficção na análise e que faz tampão/rolha ao real, segundo uma definição de Lacan.
O fantasma dito fundamental? Na origem, era o fantasma... Aí procuramos respostas, pensamos ter achado provas a sustentar. Podemos nos apoiar aí por muito tempo. Dizemos ainda “travessia do fantasma”, tal uma experiência, uma travessia do deserto, pontuados de miragens? Miramos ai, muramos ai (fechamos)... e se... esperamos, esperança de uma verdade original, exagerada-mente. Uma verdade que tentamos cercar e que escapa, sempre.
Apreender a função de logro do fantasma (o que pode ser na ocasião de uma interpretação) tem um efeito singular sobre o analisante no sentido de um espanto, até mesmo de uma estranheza, tal o Unheimliche freudiano (inquietante estranheza). Pois o que estava revelado, dificilmente, até então, e ao qual se estava se familiarizando (heim = de casa). Pensando, enfim, ter encontrado lugar, apreende o que marca nossa diferença, esta singularidade mesma se revela equivocada.
Momento de vacilo. Um deslocamento se opera, sensível. Ele diz respeito ao lugar do sujeito no fantasma. Não se trata mais de perseguir verdades sobre si via o Outro, maneira de denunciá-lo como causa e, portanto, de fazê-lo consistir. Uma outra verdade aparece cujo sentido se impõe. Este revela um saber que não implica mais o outro no fantasma, mas somente sujeito e seu gozo. Revelação que, além disso, esclarece o papel centrar dado (sem o conhecimento do sujeito) ao Outro.
Pode-se disso encontrar-se aliviado, pois desatravancado do Outro, um movimento se cria contrastando com a fixidez do fantasma e percebemos, enfim, um término possível à análise. Mas podemos também ceder ao horror de saber e sermos pegos por aquilo que faz sintoma. Em alternância.
Todavia, essa experiência é inédita e faz ponto de ruptura na cura, pois ela enfoca aquilo que escapa, a parte de insabido que faz horror. Não seria isso que indica Lacan quando, depois de ter sublinhado o “modo constante” do fantasma, ele designa “o lugar que ele mantém para o sujeito” (10) que é a do real?
Segundo a hipótese, pode-se, então, dizer que flagrar a função de ficção do fantasma é um requisito necessário à conclusão da análise, enquanto ele dá a medida de um real como ponto de parada? A relação do sujeito com o sintoma daí se encontra logicamente afetada, ali está o intratável, o sintoma como resto sobre o qual ele topa.
Identificar-se ao seu sintoma e ficar satisfeito com isso (afeto assinando o fim da análise) supõe um outro passo que depende não da lógica, mas do particular.

Tradução de Glaucia Nagem
Revisão de Dominique Fingermann


NOTES
(1)           Freud, S. (1937). “Analyse finie, analyse infinie”, in Résultats, idées, problèmes II , Ed. Puf 1987, p. 231.
(2)           Lacan, J. (1960). “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”, in Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998, p. 841.
(3)           Lacan, J. (1970). “Radiofonia”, in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2003, p. 425.
(4)           Id., p. 426.
(5)           Lacan, J. (1972-73) O Seminário — Livro 20, mais, ainda. Rio de janeiro : Jorge Zahar Editor, 1985, p. 103.
(6)           Lacan (1974-75) Séminaire « RSI » Ed. de l’Association Freudienne Internationale, 2002, p.79
(7)           Ibid., p.79
(8)           C. Soler « Les affects lacaniens » Ed. Puf, 2011, p.147
(9)           Lacan (1976) in Autres écrits, « Préface à l’édition anglaise du séminaire XI », Ed. du Seuil, 2001, p.572
(10)        Lacan « La logique du fantasme. Compte rendu du Séminaire 1966-1967 », in Autres écrits, Ed. du Seuil 2001, p.326





[1] O título original e-preuve(s) joga com as acepções das palavras éprouver (experienciar) e prouver (provar). Em português não temos a possibilidade desse jogo de palavras. No entanto, etimologicamente a palavra “prova” pode ter o sentido de ensaiar, examinar, verificar, reconhecer por experiência, julgar, aprovar, demonstrar, provar. Assim, o título em português perde o jogo, mas mantém o duplo sentido de provar e reconhecer por experiência.
[2] No original: croire à. Em português não temos a possibilidade de traduzir como “crer à”. Segundo o dicionário Petit Robert, croire à é um tipo de crença por convicção, de um modo muito naïf. Em francês é usado para dizer da crença no Papai Noel (ex: Croire au père Noël); Lacan utiliza este modo de escrita, por exemplo, na Jornada de Cartéis de 1975 para dizer da relação de crença na psicanálise. Ele fala em “croire à Psychanalyse”.
[3] No original: combien de foi(s). A autora joga com dois sentidos possíveis ao incluir nos parênteses o “s”. A palavra foi significa “fé”, mas colocando o s no fim, ela passa a significar “vezes”. Assim, como não temos a possibilidade dessas duas formas escritas em português, a opção da tradução foi a de colocar as duas formas possíveis de leitura.
[4] Tradução livre, pois não existe até o momento uma versão deste livro em português.

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