TEXTOS



Mais Uma

Lia Silveira

Ocupando a função de mais um num cartel que teve como tema “o feminino nas músicas de chico Buarque”, chega a hora de escrever aquilo que seria meu “produto” deste cartel e me vi dividida entre falar do tema ou falar da função, pois, na experiência deste cartel, ambos me tocaram  de forma sensível. E foi aí que me veio a lembrança de que, na sua Ata de Fundação (e em outros documentos da Escola), Lacan define essa função no feminino:

“Para a execução deste trabalho adotaremos o princípio de uma elaboração baseada num pequeno grupo (e temos um nome para designar esses grupos); cada um deles será composto de tres pessoas, no mínimo, e por cinco no máximo – quatro é a medida certa. MAIS UMA, encarregada da seleção, da discussão e do destino reservado ao trabalho de cada um”. (Lacan, Ata de fundação)


Terá sido essa feminização do “mais um”, como costumamos chamar, apenas uma exigência gramatical, já que ele se referia na ocasião a “pessoa”? Pode ser que sim. Mas como fui ensinada por Lacan mesmo a seguir o rastro do significante e de que as exigências gramaticais tem a ver com a ordem simbólica, resolvi apostar que seria possível aproximar o tema “o feminino nas músicas de Chico Buarque” da função que ocupei neste cartel, Mais uma, portanto.

Começo com o tema. Na nossa primeira reunião, definimos que cada um escolheria uma música de chico Buarque e que através dela, colocaria sua questão. Minha escolhida foi “Uma canção desnaturada”, música tão cortante como os cacos de vidro a que ela se refere e que diz assim:

“Por que creceste, curuminha
Assim depressa, e estabanada
Saíste maquiada
Dentro do meu vestido
Se fosse permitido
Eu revertia o tempo
Para viver a tempo
De poder

Te ver as pernas bambas, curuminha
Batendo com a moleira
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, curuminha
Que atravessei em claro
Ignorar teu choro
E só cuidar de mim

Deixar-te arder em febre, curuminha
Cinquenta graus, tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama-seca
Quebrar tua boneca, curuminha
Raspar os teus cabelos
E ir te exibindo pelos
Botequins

Tornar azeite o leite
Do peito que mirraste
No chão que engatinhaste, salpicar
Mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído”

A música trata da relação mãe e filha, na perspectiva da mãe, marcada pela dificuldade de lidar com essa filha que, ao crescer, se apossa de seus signos de feminilidade (a maquiagem, o vestido) e se aventura a dar os primeiros passos rumo a uma separação.
A resposta da mãe na música traz a marca de uma devastação progressiva: te negar meu colo, Deixar-te arder em febre, quebrar tua boneca, salpicar cacos de vidro, até a anulação máxima “Te recolher pra sempre À escuridão do ventre, de onde não deverias nunca ter saído.”

Freud já falara da importância da vinculação pre-edipiana da menina à mãe na constituição da feminilidade. Lacan, quando constrói as suas formulas da sexuação, fala do lugar de objeto de onde aquele que se coloca do lado feminino é abordado pelo homem como causa de seu desejo. Minha pergunta era então sobre as relação entre esse lugar de objeto em que a menina é tomada pela mãe na relação pre-edípica e o lugar de objeto de onde ela é acessada pelo homem no encontro sexual. Seria esse mesmo lugar de devastação que se aproximaria quando ela é tomada pelo homem como condição de seu desejo? Hipótese angustiante, eu diria, se tomarmos como exemplo a canção desnaturada.

A formulação de uma resposta a essa pergunta transcendeu em muito o espaço do cartel, mas talvez tenha sido lá, na condição de mais uma, que pude perceber pela primeira vez seus efeitos.

Vamos ao mais uma. A definição que Lacan dá a esse lugar é o de encarregar-se da seleção, da discussão e do destino dado ao trabalho de cada um. Sem ainda saber muito bem o que isso significa, lá fui eu: selecionamos os textos e começamos a discussão. Num primeiro momento revela-se a motivação transferencial do convite que coloca a mais uma no lugar de sujeito suposto saber. Em diversos momentos, o cartel dirigia perguntas, pedia explicações, etc. Mas esta não é a função da mais uma. Ela tem que se retirar de qualquer lugar de mestria. Não é fácil, pois faz parte da facticidade dos grupos tentar reunir-se em torno de um líder, já disse Freud. Em diversos momentos me vi cedendo, noutros me retirando. Mas foi na verdade um dos textos selecionados que escancarou de vez esta impossibilidade: Aturditos! Esse texto teve no grupo um efeito de produzir uma resistência muito grande. Não entender nada era angustiante para alguns. Chegou a beirar o ódio. O cartel enfrenta dificuldades para se reunir, os encontros são tensos. Nesses momentos, acho até que quem exerceu o lugar de mais uma foi o próprio Chico Buarque, pois quando tudo estava muito duro, recorríamos à poesia de suas letras para suportar a angustia. Fomos caminhando. Minha intervenção foi no sentido de convidar a nos entregarmos a esse não saber (eu mesma inclusive), seguirmos o texto sem deixar que a angústia nos detivesse e sem saber aonde isso nos levaria... e, para minha surpresa, esse lugar de não saber operou.

Houve uma reviravolta na posição do cartel que foi sentida por cada um de maneira singular. Abrir-se para o fora do sentido fálico. Até as letras da músicas escolhidas foram, por alguns, tomadas de uma outra maneira. (Talvez os trabalhos aqui expostos deem testemunho disso, pois acho que não cabe a mim fazê-lo). Mas o certo é que um outro gozo instaurou-se no cartel e agora a resistência tinha se transformado em satisfação com os encontros, com o tal texto que tinha nos deixado aturditos. Mas tinha chegado o fim: o cartel tinha acordado que se reuniria por um ano. 

Agora me pergunto: não seria esse movimento a própria demonstração do feminino? Mais uma, no feminino, entregue a esse não saber que pode ser a abertura para um outro gozo?
Volto agora a minha música, ao horror dessa posição da menina frente a devastação do gozo materno e à minha questão. Percebi a importância de uma estrofe que estava velada: “Se fosse permitido, te recolher pra sempre, a escuridão do ventre”.  É esse condicional que me permitiu retomar a questão de outra maneira. Lacan também já nos falou dessa devastação presente na relação “mãe – filha” e chega a dizer que, no Édipo, a interdição mais importante não é aquela que diz ao filho “tu não deitarás com tua mãe”, mas aquela que diz à mãe “tu não reintegrarás o produto do teu ventre”. “Se” fosse permitido...mas, justamente, não é. O Nome-do-pai já operou como fronteira que barra esse gozo, e é ele que permite ao sujeito ir além dessa fronteira, com a condição de servir-se dele. Função que integra a castração permitindo a abertura para um gozo suplementar, fora da significação fálica, não sem passar por ela.

Esse além do Édipo não é o retorno à condição pre-edípica, mas uma abertura possibilitada por aquilo que, entre o sujeito suposto saber e o objeto a, faz litoral. Função de gozo ou de letra, onde fazendo uso do pai (seja ele encarnado por Freud, ou Chico Buarque, a exceção que funda a regra) permite ir além dele. Deixo aqui uma última provocação: a “mais uma” seria essa dobradiça que permite a báscula da porta para o cartel? E como possível resposta, um trecho de Lacan na proposição de 9 de Outrubro de 1967 que aponta para uma convergência, através do significante “dobradiça” entre a função da mais uma e a passagem de psicanalisante a psicanalista:

“A passagem de psicanalisante a psicanalista tem uma porta cuja dobradiça é o resto que constitui a divisão entre eles, porque essa divisão não é outra coisa senão a do sujeito, da qual esse resto é a causa. Nessa reviravolta em que o sujeito vê soçobrar a segurança que extraía da fantasia em que se constitui, para cada um, sua janela para o real, o que se percebe é que a apreensão do  desejo não é outra senão a de um des-ser.” (Outros escritos, p259)




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Na soleira, a solista. 


Raissa Dantas 

Era um cartel sobre o feminino nas obras de Chico Buarque... Acredito que Cartel seja sempre um mergulho sem perspectiva de fundo, pois há ali uma fluidez de alguns inconscientes que não permitem calcular com precisão aonde a maré irá levar. São muitas as coisas que me ocorreram nesse cartel, inclusive pela boa e velha contingência que chega assim sem avisar, mas eis que escolhi duas coisas para que me funcionassem como bússola: o som e o significante.



Vejamos o substantivo coral. Remete a coro, uma composição que é executada por várias vozes. Por acaso sou cantora, e comecei minha trajetória na música em um coral. Eu tinha verdadeira paixão pelo resultado da sobreposição dos diferentes timbres. Algo que sempre me deixou confortável enquanto coralista era que havia então, ao meu redor, um coro de vozes que se sobreporiam a qualquer deslize meu, um coro guiado pelo ao menos um maestro, que manteria a ordem da apresentação. Fui nomeada soprano, e junto a mim existiam outros muitos sopranos que sustentariam a linha melódica que nos fora confiada. Tínhamos o timbre em comum e por ele nos guiávamos. Existiam outros timbres (contralto, tenor e baixo), os primeiros ensaios eram meio caóticos, porque após passada a linha de voz específica de cada timbre, todos eles se juntavam na mesma canção. Apesar de me maravilhar a possibilidade de tantas vozes diferentes executando a mesma música, aquilo me causava certa confusão, se fechasse os olhos, não sabia bem se era soprano ou contralto, mas, enquanto coral, existia a norma, a direção: você deve seguir os sopranos. Mas só existe coralista de olhos abertos.

O significante se faz por pares de oposição, o silencio legitima o som, o escuro legitima a luz e assim seguimos em cadeia. O solista legitima o coral. O solista está alí, diante dos demais, como um que fugiu dos grupos de timbres, provavelmente sua voz não pôde ser domada pelas outras. Ele está em destaque, exposto na frente do palco, não tem proteção, não tem quem o cubra, sua voz está nua diante dos Outros. Algo fez dele diferente, destacado... sozinho. O destaque por vezes deve ser algo almejado, mas ele, apesar de concentrar toda a luz do palco e ser o primeiro a receber os aplausos, está por sua conta e risco, não há a quem recorrer, não haverá quem o segure no caso do deslize. De repente as dezenas de vozes ao seu redor se calarão e ele se fará ouvir. O solista é o que existe de olhos fechados. Sua voz, por si só, será capaz de invocar. Aquela voz invoca algo, algo que deserta, um gozo, talvez...

Ao pensar no produto deste cartel, me veio à mente a soleira. A soleira deslizou e me gritou a solidão, apontando a solista. Durante a leitura da bibliografia escolhida, houve um texto em particular que nos causou muita angústia, uma angústia coletiva, O Aturdito. O aturdito incomodou, incomodou, e nos causou. Pra mim o texto que mais nos fez avançar na elaboração de uma saber sobre o feminino, justamente pela sua faceta de não se deixar saber, e nos forçar a aceitar que estávamos lidando ali com um não-saber.

Caiu-me de O aturdito a seguinte citação:

“mesmo que satisfaça a exigência do amor, o gozo que se tem da mulher a divide, fazendo-a parceira de sua solidão, enquanto a união permanece na soleira”. (LACAN, 1972/2003, p. 467)

Assim como Lacan nos fez ver que não existe um saber sobre a mulher, Chico nos fez ver que A mulher não existe. Existem aquelas mulheres das quais ele nos fala, existem as mulheres que nos foram ditas e legitimadas por ele em suas composições. Elas fascinaram, se destacaram, e viraram musas, reais ou não, musas daquela produção, musas das letras de Chico, e como musas, inalcançáveis, sozinhas em um outro lugar.

Ele nos mostrou Geni, que apedrejada e cuspida, não cabendo nos contraltos, foi solista de seu próprio drama; Beatriz sem os pés nos chão, causava admiração, mas permanecia intocável; comentou de Angélica, a dona de um estribilho nostálgico, e nos disse que Rita foi embora, sabe-se lá se desatinou tal qual Ana, rainha das loucas, se é que a loucura permite magestade.

Lily, Bárbara, Carolina, Luíza... Todas nomeadas por ele.

As mulheres de suas composições são solista, não formam coro de um mesmo timbre. São vozes inquietas, ululantes, à mercê de suas faltas, tentando lidar com aquilo que buscavam no outro, e fracassaram, não pela impotência, mas pela impossibilidade de uma relação que não existe.


  

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“Achadouros de infância”: relato sobre o estudo dos impasses na infância.

Sophia Maia

            A criança-enigma, esta que inquieta, interroga, incomoda! Esta que nos coloca diante do não-saber, diante das incertezas e diante do Real! Esta constitui meu enigma, meu ponto de partida e busca, meu motor. Tendo como referencial a psicanálise, procuro respostas acerca dos impasses que acontecem nesse período de vida. E, provavelmente, nesse percurso tenho me deparado mais com perguntas do que respostas.   Que vestígios a psicanálise pode encontrar quando algo na constituição psíquica não vai “bem”?. O que de fato é a infância na perspectiva psicanalítica? O que essas crianças podem nos ensinar? O que elas podem nos dizer? Enfim, esses e inúmeros outros questionamentos provocam em mim uma sensação de inquietude, semelhante talvez a dessas crianças quando procuram suas respostas...  

A proposta do Cartel surgiu e me pareceu um bom dispositivo para enfrentar esse desafio. Ficou estabelecido encontros quinzenais, às sextas-feiras à noite, único horário aparentemente possível para todos os membros do cartel. Nas palavras, muito bem colocadas de Dominique Fingermann “se engajar num cartel não é confortável nem aconchegante, “fazer” cartel não é brincadeira, é jogo duro assim como todos os tempos da formação do psicanalista, porque o não sabido, o saber que falta, constituem o ponto de partida. Tanto o principio motor quanto o ponto de chegada. É desconfortável e arriscado. O cartel começa com um incômodo, um não saber que atormenta, um sintoma, que pela graça da aposta se transforma em questão. O não sabido não é inefável, ele pode se formular, e fazer questão.” . E o que dizer da minha primeira experiência com o Cartel? Inesquecível, difícil, árdua... Uma inquietude que nos coloca em movimento...     Neste breve texto, exponho minhas inquietações que, de certo modo, me acompanharam nessa experiência no Cartel e não foram completamente sanadas. Aqui acho oportuno citar Maria Célia Carvalho que nos diz “Saiam de suas poltronas e produzam um escrito sobre o que formularam em suas análises e sua clínica, e o tragam a céu aberto para que um interlocutor possa levar a empreitada mais a diante. Se ainda não há uma conclusão, exponham ao menos suas crises de trabalho. Com certeza isso terá um efeito sobre o seu ato”. E aqui, hoje, nos encontramos para expor nossas elaborações assumindo nossa responsabilidade (individual) nesse processo...

Certa vez, lendo um artigo de Alba Flesler deparei-me com a proposição “criança-problema” problema aí no sentido matemático. Um problema, sim, mas não um problema no sentido pejorativo do termo, como àquele que deve ser posto de lado por não haver solução, excluído. Ao contrário, coloca a criança como problema real (partindo do conceito matemático), passível de solução. Assim, percebo os impasses na infância, problemas que muitas vezes ficam à espera de respostas, “solução”.... Problemas que, aliás, pedem, gritam, esperneiam ou – por que não dizer – calam, mas como diria Lacan, o silêncio também nos diz sobre a impossibilidade de dizer. E esses “problemas” reais que pedem, gritam, esperneiam e também calam, levaram-me a querer pensar sobre esse enigma que a infância cria e que nos deixam um ponto de interrogação enorme diante do seu processo de constituição.  Essa foi minha motivação – motiva/a/ação- para entrada no Cartel que intitulamos como Menino Maluquinho: impasses na infância. E assim, como caçador de achadouros de infância, como diria Manoel de Barros, dediquei-me a investigar os vestígios “descaminhados”, propondo-me a pensar nesse enigma.

Ao desenvolver a teoria psicanalítica Freud, a priori, não tinha como objetivo estudar a infância. Somente a partir das descobertas por meio de seus trabalhos com adultos, ele, começa a se interpelar sobre o infantil que se mantinha no adulto. Percebe-se, então, que este infantil escapa ao tempo cronológico da dita “infância”. Contudo a preocupação com o Infantil possibilita à psicanalise colocar-se em movimento, no sentido de estudá-lo durante o tempo de sua constituição.

Lacan, dando prosseguimento aos estudos freudianos, fornece importantes contribuições no que diz respeito aos processos constituintes do sujeito, promovendo especial atenção ao campo da linguagem. Sendo este sujeito constituído na e pela linguagem. Esclarecendo que a linguagem não é entendida como uma ferramenta adquirida pelo homem, em determinado nível de maturação, que tem como papel principal a comunicação. Ela é da ordem do simbólico a partir do qual se torna possível o acesso a um sistema de representações e sem o qual o homem não se torna sujeito desejante.

Assim sendo, o sujeito é constituído desde o início da vida e engloba um campo social pré-existente a criança, constituído pela história de uma família, pelo desejo dos pais, pela história de um povo assim como engloba os encontros e intercorrências que incidem na trajetória singular de cada um.  O campo da cultura e da linguagem fornecerá a criança subsídios para que ela própria possa, dessa forma, construir um lugar único. Desse processo surgirá, então, o sujeito psíquico que se caracteriza por ser um elemento fundamental que organiza o desenvolvimento da criança em seus aspectos físicos, psicomotores, cognitivos e psíquicos. (KUPFER et al., 2009).

Mas o que acontece quando algo escapa desse processo? E quando não há espaço para a escuta do sujeito? Que saída terá uma criança quando não é levado em consideração a constituição de um sujeito psíquico, uma vez que este oferece os recursos simbólicos necessários para que a criança se posicione e signifique o mundo?

Trago essas questões a partir da minha (pouca) experiência profissional. O que tenho percebido nas instituições em que atuei é que há uma tendência, quando uma criança que apresenta impasses no seu processo de constituição é levada aos profissionais de saúde, a incluí-la imediatamente em um sistema classificatório, não sobrando alternativa a essa criança de se fazer diferente. Para exemplificar, lembro-me dos diagnósticos de hiperatividade e autismo sustentados em aspectos puramente biológicos, tão em voga nos tempos atuais.  Paulo Infante que nos diz que a inclusão do sujeito modificaria, certamente, a clínica como ela vem sendo praticada possibilitando uma redistribuição de prioridades nas escolhas terapêuticas, os diagnósticos não seriam concluídos somente a partir do olhar clínico, mas também de uma escuta do sujeito.

Sendo a nossa constituição dada pela linguagem, a estrutura subjetiva é irredutível a uma ordem organicista. Cabe ressaltar que não se descartam aspectos orgânicos, mas enfatiza-se o quanto os efeitos da rede simbólica, influentes ao psiquismo, estão implicados na relação, podendo produzir limites além do que a questão orgânica em si poderia estar impondo. Trata-se de pensar a construção de um novo olhar sobre esses sujeitos e suas possibilidades.  

Para finalizar, reflito esse trabalho no Cartel citando um trecho do poema de Manoel de Barros “Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.”.

Referências

FINGERMANN, D. Cartel, ainda. Disponível em: http://www.champlacanien.net/public/docu/4/epCartelFingermann.pdf 

FLESLER, A. As intervenções do analista na análise de uma criança. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Nº 40, jan/jun de 2011.

INFANTE, P. O sujeito na clínica do desenvolvimento infantil. Revista Estilos da Clínica, vol2, nº3, São Paulo, 1997.

KUPFER, M.C. et al. Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: um estudo a partir da teoria psicanalítica. Latin American Journal of fundamental Psychopathology Online, São Paulo, v.6, n.1, maio de 2009.

LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem. Escritos. Editora Zahar, 1998.  

PESSOA, S. Cartel: uma aposta no dispositivo. Disponível em: www.campopsicanalítico.com.br



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Letra como enigma 


Ercília Maria soares Souza 



A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).

Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

(Tratado geral das grandezas do ínfimo\ Manuel de Barros)


Há muito tempo me interesso pelas palavras (faladas e\ou escritas) e Psicanálise. Portanto, um cartel sobre “Escrita e Psicanálise” me pareceu desde o início, instigante. Estudamos durante um ano, um grupo de cinco, na formação de quatro mais um, muitos textos. Em especial, destaco quatro lições do seminário XVIII de Lacan - De um discurso que não fosse semblante, incluindo aí a Lição sobre Lituraterra, um dos textos mais fascinantes e difíceis deste percurso. 

Como de praxe, após o término do cartel é chegado o momento de elaborar um produto. Momento de confronto com a própria escrita, no qual nos interrogamos sobre as afetações vindas do percurso. Eis uma palavra-chave: afetar. Um de nossos enigmas, os afetos. Ou ainda, algo que particularmente envolve cada participante do cartel de maneira única, sem explicações razoáveis, óbvias ou anunciadas. Algo que captura o sujeito e o atravessa de forma contundente. E este texto espelha tal captura tendo também na poesia um de seus alicerces. Diz o poeta: 

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.

(Trecho de Retrato do artista quando coisa\Manuel de Barros)


Para falar então de afetações e letras, começo fazendo uma diferença entre o que é falado e o que é escrito, ou melhor, entre o dizer e o escrever. Para isso, recorro a uma definição preciosa de Dóris Rinaldi baseada em Lacan. Ela diz: 

O dizer baseia-se na palavra e esta comporta uma dimensão imaginária, pois a fala tem função de significação; o escrito ao contrário, dispensa esta dimensão, não exigindo necessariamente compreensão, como evidencia a escrita poética. (Rinaldi, 2007, p. 274)

A autora faz uma ressalva aos poetas, que vem sempre primeiro e que de forma admirável escancaram quando escrevem as inversões, os deslocamentos, o não sentido, o inacreditável, o absurdo, o vil, o indizível, a troça, o escárnio, a beleza, a finitude, etc., às vezes tudo isso junto, em pouquíssimas palavras. Vide Manuel de Barros: “Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade”. 

No contraponto da escrita, está a fala buscando as explicações, a razoabilidade das ideias, o entendimento do interlocutor. Sem dúvida, falamos sem cessar, buscando significações. Em análise, não se trata da fala e sim do discurso. Mas é pela via da linguagem falada no processo analítico que deslizamos de um significante a outro com a perspectiva de fazer emergir um sujeito desconhecido que nos habita, que se apresentará nos lapsos, nas falhas, nas hiâncias ou que surgirá em nossos fragmentos de memórias. A falha nos apresenta. E a fala nos permite juntar os pedacinhos de nós mesmos. E como não somos poetas, não sabemos dizer. Cito Manuel de Barros: “A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo.” Então, se a poesia está guardada nas palavras, será que o que precisamos é poetizar palavras, palavrar com poesia, extrair poesia da palavra? Impossível. Fico com o não saber quase tudo. 

E é este não saber que nos interessa e que se apresenta na fala, na falha, na escrita. Tudo isso são versões de nós mesmos em combinações infindáveis: fala que falha, escrita que fala, falha que escreve, escrita que falha, fala que escreve, falha que se sobrepõe. Porém, segundo Lacan, fala e escrita comparecem em determinada ordem. E nesse caso, a ordem dos fatores faz diferença: a escrita vem antes da fala. Afirmativa que nos interroga de forma veemente. Palavras de Lacan (1971, p. 77): 

Que quer dizer isso a escrita? É preciso circunscrever um pouco. Quando vemos o que é corrente chamar de escrita, fica perfeitamente claro e certo que ela é alguma coisa que, de certo modo, repercute na fala. 

É importante destacar a maneira com que Lacan diz isso: a escrita repercute na fala, portanto a antecede. Ou como diz o autor em outro trecho do mesmo seminário:

A escrita é aquilo de que se trata, aquilo de que falamos. 

Não há metalinguagem alguma, no sentido de que nunca falamos senão a partir da escrita. (Lacan, 1971, p. 86)

Todavia, é preciso fazer uma pequena digressão neste momento para marcar aqui o uso das palavras letra e escrita, por vezes usadas no texto lacaniano alternadamente, como sinônimos ou mesmo de forma complementar. Luciano Elia (2008) é conciso quando elucida tal uso. Diz o autor: a letra pode ser entendida como operadora da escrita, guardado seu lugar e manejo por excelência.

Deste modo, o uso da palavra letra está remetido seguramente a anterioridade[1] que por sua vez se refere ao traço unário, ou o começo da existência humana e suas minudências. A continuidade do processo de existência encontra nas identificações, um universo de signos e sofisticadas operações que inscrevem a criança no campo da linguagem. Com as inscrições que aí se colocam, são produzidas as estratégias de cada um para produzir seu próprio discurso, esculpido na relação com o Outro. É dessa intricada teia de efeitos discursivos que emerge a letra. Em outras palavras, de forma textual em Lacan: “a letra é radicalmente efeito de discurso.” (Lacan, 1972). 

Assinalada esta anterioridade, importante apontar sua circulação. Diz Ana Costa (2009, p, 28): “Toda letra tem endereço, ou seja, sua própria produção resulta de um endereçamento pulsional, alienado ao Outro desde o início”. Ou seja, tal endereçamento está atrelado a leitura que o Outro primordial estabelece, concomitantemente à erotização que produz e ao desamparo que provoca. E neste jogo de falas e escrituras que são constituídas as inscrições discursivas em cada um, seus pontos de ancoramento para sempre. São as marcas na singularidade de cada sujeito, um a um, o cada um. Aquilo que está no antes, naquilo que o antecede, no “pré-fixo”. 

Considerando tal conjunção de sufixos e prefixos, que integram jogos de silabação, montagem e desmontagem de vocábulos, frases, etc., em incansáveis jogos de sedução e fascínio, construímos palavras que nos aproximam e nos afastam do vazio ao qual pertencemos. Além disso, o radical dessa formulação é que a “escrita é, no real, o ravinamento do significado, ou seja, o que choveu do semblante como aquilo que constituiu o significante.” (Lacan, 1971, p. 114)

Não há como acessar essa proposição de Lacan sem retomar sua explicação sobre letra e significante, expressa no seminário XVIII[2]: significante se remete ao simbólico e a letra ao real. Lacan enuncia tal oposição e ironiza: “isso (tal descrição) lhes poderá servir como um estribilho.” Uma cantilena que faz eco longamente, pois a letra que faz sulcos no real, como diz o autor, produz um ravinamento, um fenômeno oriundo dos estudos geográficos, uma erosão, um poderoso processo de escavação. Enfatizo que esta é uma direção para pensarmos a letra, a saber, uma erosão no real em busca de acessar o enigmático ou as nossas insignificâncias. 

A letra como enigma, enigma de cada um. A letra que toca o real e causa o gozo. Dito de outra forma, a letra como aquilo que aparece em nós como restos, ou como rasura. A letra como um mergulho no vácuo, quando não há contornos possíveis, acessando um tempo onde se fizeram as escansões em cada um. Ou ainda um tempo, quando inscrições se apresentaram e a letra se tornou litoral entre o saber e o gozo, formando uma fronteira híbrida. Podemos dizer que neste tempo, a letra se acosta ao real. Repito como uma ladainha: acostar-se, abeirar-se, avizinhar-se do real, produzindo, portanto, o ravinamento. 

Enfim, escrever é misturar-se, é provocar-se em associações, é convocar as aflições, é marcar-se com o inefável. É apresentar sua letra. É disso que se trata quando se convoca a letra, é uma transmissão que não está contida na escrevinhação das palavras. 

Foi onde o cartel sobre Escrita e Psicanálise fez sua captura em mim. 

Admito novamente que é melhor que os poetas falem por nós, reles mortais, nunca dignos de nota. Para isso, conto a história em poesia do menino que carregava água na peneira:

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.

Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

(O menino que carregava água na peneira\Manuel de Barros)


Façamos então despropósitos com nossas letras carregando água na peneira.


Referências:


1. BARROS, Manuel de. Tratado geral das grandezas do ínfimo.
2. COSTA, Ana. Litorais da psicanálise. Psicol. Soc. [online]. 2009, vol.21, n.spe, pp. 26-30.
3. ELIA, Luciano. A letra na ciência e na psicanálise. Estilos da Clínica, 2008, Vol. XIII, n° 25, 64-77.
4. LACAN, Jacques. Seminário, livro XVIII: De um discurso que não fosse semblante (1971). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
5. LACAN, Jacques. Seminário, livro XX: Mais ainda (1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
6. RINALDI, Doris. Escrita e invenção. In: COSTA, A. & RINALDI, D. (orgs.). Escrita e Psicanálise. Rio de Janeiro: Cia de Freud: UERJ, Instituto de Psicologia, 2007.

[1] A escrita vem antes da fala.

[2] Este texto se remete especialmente a definição de significante e letra contida no seminário XVIII.


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Escrita e Tempo

                                                                                 Luiz Roberto Delvaux de Matos

1.    Cartel.
Minha primeira experiência em Cartel. Consultei o Aurélio e lá estava: “Cartel, s.m. 1. Carta de desafio; provocação, afronta”. E que provocação? Com o auxílio das “meninas” mergulhei no que efetivamente significava Cartel na obra de Lacan e, aos poucos, fui identificando os principais conceitos propostos.

Entre os diversos escritos a que tive acesso, um deles, “Em torno do Cartel”, com organização de Bárbara Guatimosim, assim se expressava: “A experiência do cartel é sancionada (...) por um certo diagnóstico de ‘fracasso’, que não impede que persistamos na experiência. Afinal, os melhores ensinamentos em nosso campo provêm justamente ‘de ce qui faille’, do que falha, não levando a falha para o campo da impotência e do fracasso, mas sim aos giros discursivos que causam o choque contra o ‘muro do impossível’, como expressa tão bem Lacan em seu texto ‘L’Étourdit”.

Ah! E neste justo momento, nos chegou às mãos e à leitura, o Seminário 18 de Lacan, “De um discurso que não fosse semblante”, nos propondo discutir a função da escrita e melhor ainda, aprender chinês!!! Nestes momentos é que fica claro para um psicanalista o porquê “Não há relação sexual”, não é mesmo?

Crise, só crise! Pensei seriamente em abandonar o Cartel. Conversas, muitas conversas. O incentivo recebido no grupo, as voltas e reviravoltas, permitiram-me pensar minha possível produção de uma forma um pouco diferente: um novo artefato, como ensinava Lacan. E este artefato era a fotografia.


2.    Fotografia.

A palavra fotografia vem do grego e basicamente quer dizer “escrever com a luz”. No século IV a.C., Aristóteles havia descoberto o princípio da câmara escura: a passagem de luz de uma fonte externa para um espaço escuro, através de um furo ou outra pequena abertura, formando uma imagem invertida da cena externa em superfícies como uma parede ou uma tela. Em meados do século XVI, os poucos eficientes orifícios foram substituídos por lentes, dando origem a imagens mais nítidas.

 No século XVII, A câmara escura foi acoplada a uma tenda ou liteira para que pudesse ser transportada e, posteriormente, foi reduzida ao tamanho de uma urna. Durante o século XVIII, artistas passaram a utilizar com regularidade o instrumento para projetar uma imagem da vida que pudessem copiar em seguida.


3.    Fotografia e Memória.

A fotografia marca a presença de alguém (ou alguma coisa), afirmando sua presença, sua existência. É um instrumento capaz de auxiliar na descoberta de tempos. Isto é possível a partir da atuação de elementos fotográficos que possuem a força de “puxar” a memória e fazer com que a imaginação seja ressaltada.

Se pararmos para pensar, as imagens fotográficas podem narrar nossas vidas. Quem já não buscou seu passado em papéis emulsionados, guardados por parentes próximos ou distantes? Quem já não lamentou por não encontrar o registro de fases e fatos de sua história? As imagens se configuram como relação íntima de pertencimento, identidade e sentidos, desde o surgimento da linguagem fotográfica.

Por outro lado, podemos pensar a fotografia de uma outra maneira. No filme “Blow Up” de Michelangelo Antonioni a cena de um crime é fotografada. Ao captar as provas do crime, o fotógrafo capturou uma fração essencial de tempo e, a partir daí luta para provar que, no canto sem nitidez da fotografia, havia o corpo de um homem que foi assassinado. Neste caso, a imagem fotográfica não encontra correspondência na realidade, afinal o corpo já não estava mais no parque (local do assassinato), no dia em que, ao revelar o filme, ele percebe a existência de um cadáver.

O tema do filme concentra-se na impossibilidade de fazer a realidade coincidir com a representação a posteriori. Há aqui uma separação entre o que é fotografia e a realidade.

A fotografia pode trazer sim, algumas dificuldades interpretativas. Aquilo que apreendo de uma imagem fotografada é muito mais relacionado ao meu repertório de conhecimento do que à realidade fotografada. A relação que estabelecemos é de cunho interpretativo.


4.    Psicanálise e Fotografia.

Segundo Clarice Lispector, “Fotografia é o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma ausência.” Podemos definir imagem como o campo visual que envolve o sujeito e se configura num lugar amplo de representações, estas entendidas como produtos de determinadas relações entre sujeito e objeto.

Desde a “Interpretação dos Sonhos” a psicanálise trata da imagem, como imagem do sonho. Lacan ressaltou a importância da linguagem na constituição do sujeito, buscando bloquear a prepotência da imagem (sempre presente em alguns pós-freudianos). O imaginário em Lacan é o registro do engodo, da ilusão pois encobre o sujeito do inconsciente. Entretanto, a imagem é, desde Freud, simultaneamente encobrimento e vislumbre do desejo que move o sujeito.

No seu texto de 1899, “Lembranças encobridoras”, Freud colocou a questão do estatuto da recordação e o da imagem. Ele demonstrou que nossas lembranças mais vívidas podem não ser mais do que fantasias. Entretanto, em seu âmago, há uma terrível verdade que elas escondem ou encobrem: um acontecimento traumático. Tratam-se de fantasias que encobrem a cena real, mas não deixam de apresentá-las de maneira deformada ou cifrada.

Assim, Freud faz da reprodução mnêmica uma construção que encobre a verdade, mas que, de alguma maneira a deixa entrever. Com isso, ele acentua a distância entre vivência e representação. A imagem é obstáculo, é véu sobre o trauma, uma imagem-muro.

As lembranças – material privilegiado do inconsciente – exprimem-se em imagens virtuais, levando à alucinação que é o sonho: pensamento tornado imagem. Porém a essa imagem originária não se pode ter acesso direto. O que se interpreta é o texto do sonho.

A obra freudiana opera assim uma espécie de desdobramento da imagem. Nisso, ela se equivale a revolução ocorrida entre sujeito e imagem, bem mais cedo: a invenção da fotografia. Esta abriu uma grande crise na história da mímesis.

Representação e o referente não possuíam mais uma distância segura. A própria realidade é posta em questão: seria apenas uma imagem? A realidade se distancia até se tornar inatingível. A imagem assume a dupla e paradoxal função de mostrá-la e escondê-la, ao mesmo tempo.

Não é totalmente incorreta a concepção de um “inconsciente ótico” (em Walter Benjamin, escritor alemão), marcado pelo surgimento da fotografia e comparado ao “inconsciente pulsional” freudiano. Meias verdades à parte, o material do psiquismo são as representações, acompanhadas de forma mais ou menos errantes por afetos.

Para a psicanálise, a imagem também é sintoma: ela cristaliza um conflito entre o que se pode ou não mostrar, entre o sexual enigmático e o eu, entre a imagem-muro e a imagem-furo. Os processos pelos quais a imagem se forma são figuras de linguagem, pois a imagem está de saída entrelaçada à palavra.

 5.Escrita e Tempo.

Da mesma forma que podemos definir fotografia como a escrita com a luz, podemos nos apropriar do dito freudiano de que o sonho é a realização de um desejo: ele realiza, põe em cena o desejo que desliza incessantemente na linguagem, nas cadeias do significante.

O termo utilizado por Freud – Wunscherfüllung – corresponde mais à noção de que o desejo seja “cumprido” ou “atendido”. Mas o verbo “Erfüllen” também pode tomar o sentido de “aparecer”, o que reforça a ideia de que o sonho consiste numa realização de desejo na medida em que ele torna visual – faz aparecer – o desejo. Talvez se possa generalizar a fórmula e afirmar que a imagem é um trabalho que faz aparecer o desejo. Este será o meu caminho, o MEU DESEJO.

Encerrando esta breve produção, gostaria de agradecer as “meninas” do Cartel. Foi um percurso duro, mas belo. Neste momento em que me encontro procurando “novos horizontes” gostaria de deixar aqui (quase como minhas), as palavras de Caio Fernando Abreu:

“E o que a gente vira quando vai embora de alguém?
E o Senhô respondeu:
Uns viram pó. Outros caem igual estrela do céu. Outros só viram a esquina. E tem aqueles que nunca vão embora.
Não? E eles ficam onde, Senhô?
Na lembrança.”

Grato a todos.


  * * *



Escrevendo meias*minhas palavras – Minha experiência num cartel sobre escrita



Sabrina Barros Ximenes 




A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.

Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.




Tratado geral das grandezas do ínfimo – Manoel de Barros



O Cartel é, para Lacan, um dispositivo importante na formação. Composto a partir de três pessoas, com o máximo de cinco e uma boa soma sendo quatro, onde um desses integrantes desempenha o papel de Mais-Um. O Cartel se forma em torno de um tema em comum e serve como um espaço em coletivo para cada um desenvolver dentro do grupo suas especificidades dentro da proposta. 

No nosso Cartel não foi diferente. O tema que nos moveu foi o da Escrita e quando proposto, por mais iniciante nas leituras lacanianas, me animei bastante para acompanhar e desenrolar tal proposta.

Esse texto não se propõe aprofundar acerca do método, nem talvez enquanto aporte teórico, na realidade, surgiu enquanto elucubrações acerca da caminhada, de mudanças no percurso e da perda do objeto primeiro para possibilitar novos começos. Alguns nem bem delimitados ainda, por saber que ainda não os sei.

A escrita é algo que carrego em mim desde muito nova, foi inclusive o que me levou para inúmeros lugares prazerosos e outros nem tanto nesse percurso de vida. Foi quase automático ao ouvir tal tema me dispor a participar. Porém, foi uma proposta que rapidamente saiu da linha do que havia imaginado para um outro lugar. Lugar esse interessante também, mas que me causava muita angústia – tema esse constante no que vivia no momento. Daí se misturou criador e criatura e algo que poderia ser gostoso de se trabalhar se tornou algo curioso de procurar, mas que em certos momentos tentava evitar. Ou seja, havia algo rondando nessa palavra. 

Nosso Cartel foi marcado por diversos momentos de entraves e isso poderia ter sido algo ruim, mas acredito que eram nas conversas posteriores que voltava a vontade, por mais carregada de entraves e dificuldades que fosse, de estar lá. E acredito que nesse momento de palavra foi que mais fizemos determinadas escritas em relação à proposta. Daí resolvemos entrar num caminho tortuoso da escrita chinesa. Confesso, esse seminário e alguns textos que o envolviam, foi um dos momentos de maior “viagem”e dificuldade, mas que trouxe indagações, associações riquíssimas. E sempre voltava com uma tonelada pesada nas costas, mas me animava poder ter essa experiência dentro de um grupo. Desse grupo em específico.

De início, no meu imaginário, seria um grande espaço para falarmos da palavra escrita, da possibilidade desse encontro entre psicanálise e literatura, levando alguns autores, pensando assim. Foi aí que entendi essa parte “é um estudo em coletivo, mas onde cada um tratará de forma individual seu produto”. E, de fato, um tema tão amplo, como afunilá-lo? Resolvi ir indo na direção que estava no momento, as autoras femininas e o tema da angústia. Só fez aumentar a minha, mesmo assim me deu um norte considerável dentro dos textos que estávamos lendo e do que eu estava descobrindo. 

E assim como o inconsciente que inventa e cifra, ao invés de decifrar, isso não ocorre. A possibilidade dessa transformação de escrita ruína – como lembro que li em algum texto – em significante, foi base para novas descobertas dentro do cartel. Que tornaram as ideias ainda mais obnubilosas, mas com a angústia dessa forma trabalhando muito mais a favor do que contra. Hoje tenho um tempo meu particular que permeia esse caminhar outro.

Então, voltando ao início me questionei o real motivo de estar ali. Poderia ter sido um caminho novo para um projeto pessoal de escrita? Uma nova forma de balizar aquele estado que por mais que me visse nele, por outras razões fui cotidianamente me afastando? Então lembrei de Pessoa e da sua afirmação “Eu escrevo para salvar a alma. Parecia exatamente aquele o meu lugar, ou Clarice que disse uma vez “ Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que foi essa que segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.”

Ou então, como escreveu Manoel em O apanhador de desperdícios



Uso a palavra para compor meus silêncios.

Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.



Na verdade, o cartel sobre escrita abriu outros olhares, foi caminho para olhar um passado aparentemente perdido, mas que que teimava em bater à porta. E se viver é um rasgar-se e remendar-se, como bem disse Guimarães em João Porém, o criador de perus, costuro aqui essas meias palavras. E que não são suficientes. Existe uma briga interna em mim sobre essa questão “suficiente”, mas o curioso é que foram essas meias palavras insuficientes em sua própria constituição faltosa, que conseguiram sustentar um fio já quase perdido e me segurar nessa possibilidade de – como ainda – fazer da minha escrita mote e saída e reviver o por quê da psicanálise. 




  * * *


Antes de tudo, “já era” amor.
Gardênia H. Marques

 “Ah, o amor”.  O que é isso que mexe, remexe, bagunça e nos desconcerta diante do outro/Outro? Que não conseguimos dar conta e ao mesmo tempo em que nos incita admiração e encanto, também provoca raiva, ódio. É uma ferramenta tão poderosa que nos vincula a algo des-conhecido e nos faz agrupar em 5+1, para tentar seguir os passos de Freud e Lacan sobre o amor de transferência, amor sustentado por esse UM desconhecido que nos sustentou para elaborar a difícil tarefa de estruturar o que se passou e sentimos nesse período.

A psicanálise foi criada por Freud por seu amor ao saber, não qualquer saber, mas UM que não apresentava sentido, não se enquadrava em um discurso objetivo. Um saber que provoca fascínio e curiosidade por não encontrá-lo em qualquer lugar, em qualquer momento. Saber que advém da surpresa, do inusitado.

Ao falar de amor, lembro-me do que Crisóstomo falava. Ele

(...) explicava que o amor era uma atitude. Uma predisposição natural para se ser a favor de outrem. É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa. Isso dava também para as variações estranhas do amor. (MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens. p. 111)

O personagem apresenta o amor como forma de dar o que não se tem, para que outro o tenha e não se separe. Assim, o amor se torna uma tentativa de prender o ser amado pela sedução, pelo encanto e por não saber o quê. Esse não saber é o motor da psicanálise, é o que move o desejo.

Temos com Freud que no começo da clínica “já era” o amor e o divã assim como o leito está aí para provar. É a partir de um amor representado por uma configuração especial que é possível a clínica da psicanálise.

Há que clinicar. Isto é, deitar-se. A clínica está sempre ligada ao leito vai se ver alguém deitado. E não se encontrou nada melhor do que fazer deitar-se aqueles que se oferecem à Psicanálise na esperança de se obter um benefício que, deve-se dizer, não está, de antemão, garantido. É certo que o homem não pensa do mesmo modo deitado ou de pé, ainda que só fosse pelo fato de que em posição deitada faz muitas coisas, em particular o amor, e o amor o conduz a todo tipo de declarações. (LACAN, 1977, p.2).

O deitar-se na prática analítica refere-se a uma produção de saber causada pelo corte do olhar do analista para o analisante e vice-versa. Produção esta que é iniciada pelo amor, o amor de transferência. Quando a psicanálise ainda não estava formulada, o amor já estava em cena, Freud só não sabia ainda como manejá-lo. Amor que começa com a paixão de Anna O por Breuer que se deixou ludibriar por esse atendimento no qual a esposa do médico necessitou alertá-lo sobre essa paixão. Paixão inconsciente que fez até Anna O simular um parto de um filho seu. Não sabendo o que fazer com o que se apresentava na clínica, Breuer recua e interrompe o tratamento.

Entre 1893 e 1895, Freud produz junto a Breuer o livro Estudos sobre a Histeria. Esses estudos apontam a perspectiva de tratar a etiologia dos fenômenos histéricos a um conteúdo sexual. Breuer renuncia a isso e Freud impulsiona uma pesquisa sobre tal relação..

Depois temos Dora. Paciente de Freud que se sentia desprezada pelo pai e se colocava como objeto de troca entre o amor do pai e da senhora K. Esses casos fizeram Freud avançar e concluir que o fenômeno da transferência é um dos principais fundamentos da teoria psicanalítica (FREUD, 1915). Em “Observações sobre o amor transferencial” Freud (1915) alerta aos iniciantes da psicanálise sobre as dificuldades encontradas no inicio do tratamento como em interpretar as associações dos pacientes são irrisórias diante do problema maior: o manejo da transferência. Para tal, explicita um caso sobre a paixão que a paciente nutre pelo analista. Freud alerta que essa paixão não deve ser correspondida, mas questionada na análise para que se saiba a que repetição ou lembrança esta paixão se encontra associada.

Devo começar por esclarecer que uma transferência está presente no paciente desde o começo do tratamento e, por algum tempo, é o mais poderoso móvel de seu progresso. Dela não vemos indício algum, e com ela não temos por que nos preocupar enquanto age a favor do trabalho conjunto da análise (FREUD, 1915, p.444).

O analista não deve ceder às investidas da paciente, pois tal investimento amoroso pode estar ligado à uma lembrança do passado que se atualiza no momento atual.Embora não se tenha um modelo ideal a ser seguido, o analista deve ter o cuidado de não repelir o amor transferencial caso contrário o tratamento poderá ser prejudicado. Sendo assim, o manejo da transferência apresenta uma linha tênue e só pode ser apreendido pela experiência clínica do próprio analista e ainda assim não se tem garantias...

Encontramos em Freud (1914) a afirmação contundente que “antes de tudo, o paciente começará seu tratamento com uma repetição”. Se é uma repetição, o analista não deve ceder às exigências do paciente e se afastar de seu narcisismo, pois o que há na análise é antes uma função do que a pessoa do analista. O manejo da transferência se dá, segundo Freud, quando mostramos

ao paciente que seus sentimentos não se originam da situação atual e não se aplicam à pessoa do médico, mas sim que eles estão repetindo algo que lhe aconteceu anteriormente. Desse modo, obrigamo-la a transformar a repetição em lembrança. Por esse meio, a transferência que, amorosa ou hostil, parecia de qualquer modo constituir a ameaça ao tratamento, torna-se seu melhor instrumento, com cujo auxílio os mais secretos compartimentos da vida mental podem ser abertos. (FREUD, 1915, p. 444-445).

Entretanto, Freud alerta que o paciente por ele próprio deve chegar a essas conclusões. A repetição pode levar a uma elaboração do que se ama e do que se quer. Lembro da música do Cidade Negra, “Onde você mora”, que diz:
Amor igual ao teu
Eu nunca mais terei
Amor que eu nunca vi igual
Que eu nunca mais verei
Amor que não se pede
Amor que não se mede
Que não se repete
O compositor acerta quando diz que nunca mais terá um amor que teve em um tempo anterior. De fato, não terá. O primeiro objeto de amor está perdido, daí a busca incessante por ele, e quando se pensa que encontra se perde.

Mas ele não foi tão bem sucedido quando diz que ele não se repete, pois o que ouvimos na clínica é uma repetição de um laço amoroso. Algo que se repete, embora não se saiba o que. Quando Lacan fala que “a transferência é a atualização da realidade do inconsciente” podemos aferir de que a repetição é inerente ao sujeito e que tal realidade é sexual. Realidade que coloca algo ou alguém como objeto de desejo. Entretanto, o sujeito pode dar outro destino a repetição, pela via da elaboração e por um novo posicionamento frente a isso.

Freud (1913) situa que a relação estabelecida com o analista se dá sob a transferência e com isso é possível conduzir o paciente à regra fundamental da psicanálise: a associação livre. Essa regra além de induzir o paciente a falar o que lhe viesse a cabeça, sem nenhum preconceito e risco moral, também permite ao analista escutar “daquilo que se diz, caracterizando o sujeito falante como um sujeito dividido em seu discurso, um sujeito que não sabe de todo o que diz” (MORETTO, p.38), ou seja, escuta a realidade psíquica. Isso constitui a regra para o lado do analista, assim, expressada por Freud: “Ele deve conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar atenção e abandonar-se inteiramente à memória inconsciente.” (FREUD, 1912, p.67).

Numa análise, fazer falar é provocar e evocar os traços das marcas da vida amorosa, das relações de objeto; é evocar o objeto perdido, busca incessante, motor de desejo. A fala é carregada de afeto, atravessa o tempo, cria lembranças e lança ao futuro um suposto passado. Assim é a realidade psíquica. (FIGUEIREDO, p.139)

Sendo assim, o analista, colocado nessa posição através do amor de transferência responde com seu amor pela verdade. Amor que “põe o analista em posição de confiar no inconsciente, no processo primário [...] Cabe ao analista [...] esvaziar a possibilidade de uma significação última, definitiva.” (FIGUEIREDO, p.147/148).

Temos então, no amor uma busca pelo encontro, encontro perdido, mas que não cessa. Tal como vemos no “Velho que ainda escrevia cartas de amor”, de autoria de Felipe Barroso. Cartas que o velho escrevia para sua primeira namorada, primeiro amor, que morrera ainda quando jovem, mas que ele não cansava de esperar. A Morte que os separou agora se torna uma morte desejada para o tão esperado encontro de amor. No dia da sua morte, o bilhete estava lá guardado em seu bolso para na hora do encontro, a entrega.
É, o amor já está ali presente, desde sempre, e quando se ama, “já era”.

REFERENCIA
BARROSO, Felipe. O velho que ainda escrevia cartas de amor.
FIGUEIREDO, Ana Cristina. Vastas Confusões e Atendimentos Imperfeitos: a clínica psicanalítica no ambulatório público. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará, 2004.
FREUD, Sigmund. 1915 [1914] Observações sobre o amor transferencial. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XII.
FREUD, Sigmund. (1912). A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XII.
MAE, Valter Hugo. O filho de mil homens.
MORETTO, Maria Lívia Tourinho. O que pode um analista no hospital? São Paulo: Casa do psicólogo, 2006.
LACAN, Jacques. ABERTURA DA SEÇÃO CLÍNICA.Vincennes, 5 de Janeiro de 1977
Música: Aonde você foi?  Cidade Negra

                                                                      * * *

O recalque: de suas primeiras formulações à sua conceitualização

Fabiano Rabêlo
(membro do FCL-Fortaleza, de FCCL-Fortaleza e da EPFCL)

Nesse texto discutiremos os diversos avatares que o recalque assume na obra de Freud, relacionando-o com as experiências fundadoras do dispositivo psicanalítico. Enfatizaremos, com Freud e Lacan, os desdobramentos éticos, técnicos e teóricos dessas experiências.
No prefácio para a segunda edição dos “Estudos sobre a Histeria”, Freud (Breuer et Freud, 1895/2001) recomenda aos interessados pela psicanálise que se iniciem nesse campo com a leitura dos “Estudos”. Diz que aí se encontra a semente (Keim) da experiência psicanalítica (ibidem, p. 23). Lacan (1986) também destaca a importância desse livro. Segundo ele, encontramos nele “uma longa exposição da descoberta da técnica psicanalítica. Ali, vemo-la em formação” (ibidem, p. 73).

Lacan, em referência a esse prefácio escrito por Freud, situa nos “Estudos” o que considera a célula germinal da observação psicanalítica (ibidem, p. 36). Essa célula fundadora, nos diz, pode ser encontrada numa forma particular de indagar a história do indivíduo. Adverte que essa abordagem não objetiva produzir uma historiografia, mas sim restituir a história do sujeito no presente: “o que se trata é menos lembrar do que reescrever a história” (ibidem, 23).

Explica que a reintegração dessa história ultrapassa os limites do indivíduo na medida que se abre para as incidências da linguagem no sujeito. Ao dizer que a história que interessa ao psicanalista possui um caráter transindividual, Lacan aponta para a dimensão da alteridade constitutiva do desejo. Tal alteridade, por sua vez, remete à inscrição no corpo de determinados significantes privilegiados, sucedâneos de exepriências de satisfação que exerceram efeitos marcantes no psiquismo. Podemos nomear esses momentos de trauma e seus efeitos, fixação.

Para Freud, o recalque está no cerne dessa escritura paradoxal do vivido. Ele pressupõe uma modalidade de registro que condiciona o conteúdo inscrito a certas condições de manejo. Por outro lado, toca em elementos que estão no ponto máximo de distensão das possibilidades de elaboração dos excessos de intensidades suportados pelo psiquismo. Esse ponto limite remete-nos à sexualidade, uma vez que é na tomada da posição diante da diferença sexual que o sujeito é confrontado com suas vivências de satisfação mais fundamentais.

Vinte anos depois dos “Estudos”, em resposta a Jung, que propunha a primazia de uma energia dessexualizada, Freud (1914/1999) reafirma a tese da etiologia sexual das neuroses e indica que o ensino do recalque (Verdrängungslehre) deve ser tomado como a pedra angular (Grundpfeiler) do edifício psicanalítico. Continua: “o recalque não é só a pedra angular, é a parte mais essencial (“wesentlichste”) desse edifício”. Em seguida, refere-se ao processo de formulação do recalque: diz que ele “não é nada mais que a expressão teórica de uma experiência que pode ser repetida quando se abandona o uso da hipnose na análise de neuróticos” (ibidem, p. 54).

Após refutar argumentos de críticos e colaboradores, que indentificavam em elementos da filosofia, da biologia e da psicologia a raiz dos pressupostos da psicanálise, Freud sai em defesa da originalide do conceito de recalque: “O ensino do recalque é uma aquisição do trabalho psicanálítico obtido de modo légitmo como extrato teórico a partir de muitas e incontáveis (unbestimmt) experiências” (ibidem, p.55).

Pedra angular, mas também produto de uma praxis (e não seu pressuposto): eis o lugar peculiar do recalque na psicanálise. Podemos dizer daí que o recalque serviu como referência técnica à prática psicanalítica bem antes de sua conceitualização. As primeiras formas de concebê-lo são solidárias às torções de discurso que culminaram na demonstração do saber inconsciente.

É apenas nos artigos metapsicológicos que Freud (1915/1997) desenvolve uma coneituação para o recalque. Ele o define como algo que se situa entre a fuga (Flucht) e o julgamento de condenação (Verurteilung, Urteilsverwerfung). Declara como condição para o recalque que a obtenção de uma finalidade pulsional (Erreichung eines triebzieles) cause desprazer (Unlust) ao invés de prazer (Lust) (ibidem, p. 107). Temos então um cálculo de economia psíquica: os motivos de desprazer (Unlustmotiv) devem se apresentar como mais relevantes do que o prazer da satisfação (Befriedigungslust) (ibidem, p. 108). Destaca ainda que o recalque não é um mecanismo de defesa constitucional (Ursprunglich VorhandenerAbwehrmechanismus). Para ele existir, faz-se necessário a intervenção da linguagem e do Outro, ocasionando a divisão entre Inconsciente e Consciente.
Sua essência consiste em expulsar e manter afastada do Consciente (Abweisung und fernhaltung des Bewussten) (ibidem, p. 108) as manifestações psíquicas do Insconsciente. O recalque busca fazer isso separando a representação do afeto.
Para concluir, apontamos a leitura dos “Estudos” como uma oportunidade de acompanharmos Freud na exposição de algumas das incontáveis torções produzidas nos casos clínicos que conduziu. Uma primeira concepção de recalque surge como produto desse caminho de investigação.

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Bibliografia

BREUER, Josef et FREUD, Sigmund. (1895) Studien über Histerie [Estudos Sobre histeria]. Frankfurt am Main: Fischer Verlag Taschenbuch, 2001.

FREUD, Sigmund. (1914) Zur Geschichite der Psychoanalitische Bewegung [Sobre a história do movimento psicanalítico]. In: GW. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2000. v. X, p. 43-113.

FREUD, Sigmund. (1915) Die Verdrängung [O recalque]. In: Studienausgabe. Band III. Frankfurt a. M.: S. Fischer, 1997. v. III, p. 103-118.

LACAN, Jacques. O seminário - livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. 1986.

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O recalque nos "Estudos sobre a histeria"

Fabiano Rabêlo
(membro do FCL-Fortaleza, de FCCL-Fortaleza e da  EPFCL)




Neste trabalho propomos abordar, na condição de um préâmbulo, a construção da concepção de recalque nos “Estudos sobre a Histeria”. O uso do termo “construção” é pertinente, pois a circunscrição da operação do recalque ocorre pela via de um trabalho gradual, paulatino, estritamente implicado no fazer clínico.

Lembramos que a palavra traduzida por recalque -Verdrängung – possui um uso amplo e coloquial no idioma alemão. Freud parte desse emprego mais vulgar para operar um recorte, especificando o seu significado para a psicanálise.

A rigor, só podemos falar apropriadamente numa conceituação do recalque a partir dos artigos metapsicológicos, publicado em 1915, 20 anos depois dos “Estudos”. Tal fato, no entanto, não impede que o recalque seja estudado em sua “pré-história”, isto é, em relação às idéias, impasses, problemas e situações que antecederam e prepararam a sua conceituação.

Com isso, não tomaremos o recalque como um conceito fechado. Nosso intuito é mapear o delineamento de seus contornos, acompanhando a trilha deixada por Freud  nos relatos dos casos clínicos publicados nos “Estudos”. Nesse percurso, priorizaremos a investigação da relação do recalque com a técnica analítica.

Gostaríamos de destacar uma mudança que se processa no decorrer dos “Estudos” e que se deixa apreender a partir de uma comparação entre o prefácio, de 1895, e a comunicação preliminar, de 1892 (Breuer et Freud, 1895/2001). No prefácio da primeira edição identificamos o uso do termo “Verdrängung” (ibidem, p. 23) mais próximo da acepção psicanalítica. Nele, lemos que o recalque é um processo relacionado à defesa que afasta as representações conflituosas da consciência (Bewusstsein). O recalque é aí identificado como uma contribuição exclusiva de Freud para a etiologia da histeria.

Em “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar”, capítulo de abertura dos “Estudos”, encontramos uma utilização mais coloquial do verbo recalcar (verdrängen), declinado no particípio. Desta feita,  os autores afirmam que a consciência normal (durante as crises histéricas e as manifestações dos estados alterados de consciência) não é totalmente recalcada (verdrängt) (ibidem, p. 39).

Temos então que em 1892, para Breuer e Freud, o objeto do recalque é a própria consciência. O recalque é aqui um termo amplo e inespecífico, sem nenhuma conotação técnica. Já em 1895, para Freud, o recalque adquire o lugar de uma operação psíquica delimitada que fornece uma explicação sobre a origem da histeria, relacionando-a com um trauma psíquico de ordem sexual.

É possível notar como a emergência dessa ideia está profundamente implicada com as transformações técnicas implementadas durante a condução dos casos clínicos, o que faz com que cada um dos tratamentos que Freud publicou possa ser tomado como um avatar dessa passagem longa e trabalhosa do método catártico para a técnica psicanalítica.

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Bibliografia

BREUER, Josef et FREUD, Sigmund. (1895) Studien über Histerie [Estudos sobre Histeria]. Frankfurt am Main: Fischer Verlag Taschenbuch, 2001.



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Brevidades sobre o sintoma 
Graça Soares
(membro do FCL-Fortaleza e da EPFCL)

           Ética e saber na clinica da psicanálise coexistem, na clinica psicanalítica, numa lógica möebiana.  No seminário de 1971, a propósito do saber na psicanálise, Lacan diz que a questão crucial em que o discurso psicanalitico subverte o discurso universitário passa pelo fato de que o "saber" -   - está colocado no lugar de semblante, enquanto que, no discurso analítico, esse lugar é vazio, representado pela letra "a". Ou seja, presença do analista implica uma ausência de  no lugar do semblante.

            Por outro lado o que a psicanálise nos ensina é que esse saber que se tece sobre o divã não revela toda a verdade, pois como Lacan há muito  o disse, a verdade é não-toda. Dela, um restoinapreensível pelo simbólico, insiste. Resto que mais tarde o sujeito tem que saber se haver com ele por outras vias, num mais-além da linguagem. À linguagem falta um significante que a impede de dizer tudo. Esse furo na linguagem, leva Lacan a afirmar que "a verdade não pode ser toda dita". E assim, a clinica psicanalíticapelo efeito puro e simples da linguagem,  é uma clinica de meia-verdade. E no que concerne à construção dessa verdade claudicante, me interrogo se o desejo do sujeito é passível de interpretação, pois tudo leva a crer que o sintoma do sujeito é quem de fato e de direito o interpreta.

            Passemos então, a discorrer brevemente sobre os caminhos trilhados pela teoria do sintomaem Lacan.  No inicio de seu ensino, o sintoma era metáfora, enigmaque uma vez desvendado, tinha efeito de verdadeEm "Função e campo da fala e da linguagem"embora ele diga, literalmenteque, "está perfeitamente claro que o sintomapor ser pleno de sentido, e se resolve por inteiro numa análise",  faz notar a coexistência, no sintoma, do simbólico e do real: "o sintoma é símbolo inscrito na areia da carne e no véu de Maia". sintoma enquanto símbolo "inscrito" pertence ao campo do simbólico, mas "escrito" sob o véu de Maianão estaria também no campo do real? A titulo de esclarecimento, a expressão "Véu de Maia", é usada pelos orientais para dizer que “ver algo sob o véu de Maia faz também existir o que não existe", tamponando assim, a incompletude tão angustiante para o sujeitoSem elesem o véu de Maia, constata-se rapidamente o “nada”. Em RSI Lacan confirma isso ao afirmar que  estava na idéia do “Discurso de Roma” que o inconsciente ex-sisteque ele condiciona o Real.

partir do inicio da década de 1970 Lacan se afasta do pensamento estruturalista, onde o simbólico detinha primazia nas estruturas clinicas, para trabalhar com a perspectiva de uma equivalência entre os três registros, e a estrutura do sujeito passa a ser determinadapela forma de enlaçamento do simbólico, do imaginário e do real: RSI, SIR, IRS.

"O Realeu inventei", diz Lacan. "E eu o escrevo sob a forma do nó borromeano, que não é um nó, mas uma cadeia. "Quando ele distingue "cadeia" de "nó"ele quer dizer que a estrutura do sujeito é um encadeamento dos três registros, retirando a prevalência de um sobre o outro. A qualidade de ser uma verdadeira cadeia borromeana é o fato de RSI serem enodados,  pelo Nome-do-Pai. Para manter a consistência do Nome-do-Pai nessa nova forma de escrever a estrutura do sujeito ele cria um quarto elemento na escrita do  para ali situá-lo, e dá-lhe o nome de Sinthoma (th). 

Ao introduzir a teoria dos nós na segunda parte do seu ensino, o "discurso" cede lugar à escritaEnquanto no primeiro se privilegiava a produção de sentido, na escrita o que prevalece é o sem-sentido.  Isso traz mudanças cruciais no manejo da transferência, pois Lacan alerta que “o efeito de sentido a se exigir do discurso analítico não é imaginárionão é também simbólico; é preciso que seja real”. A assertiva anterior de que o simbólico faz furo no real, sofre uma torsão e agora, é o real que faz furo no simbólico. Há um gozo no significante irredutível à significação. Na clinica, não se trata mais apenas de escuta,  mas do que se" no que se escuta".

teoria dos nós constitui a ultima elaboração de Lacan sobre o sintoma, chegando à escrita do inconsciente por meio da cadeia borromeana. Nela sinthome surge como o quarto elementoque ao enlaçar os três registros - agora equivalentes entre si – produz uma cadeia bo, e como nos lembra Lacan, “se há equivalêncianão há relação”. À falta de relação sexual, o sujeito responde com o sinthome: Cito:  “ Sinthoma é a resposta que o sujeito encontra frente ao gozo da falta de relação sexual”.

Fortalezajulho de 2011.

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Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores... (1)
Lia Carneiro Silveira
(membro do FCL-Fortaleza, de FCCL-Fortaleza e da EPFCL)

Inicialmente eu gostaria de agradecer ao Grupo de Estudos em Transtornos Afetivos, na pessoa de seu coordenador o Prof. Dr. Fábio Gomes de Matos e Souza pelo convite para estar neste curso intitulado Transtornos Afetivos ao Longo da Vida. Soube que este espaço é um projeto da Universidade Federal do Ceará, vinculado ao Departamento de Medicina Clínica e composto por estudantes de Medicina, de psicologia, residentes de psiquiatria, além de servidores do Hospital Universitário Walter Cantídio.

Achei importante situar isso porque fiquei realmente curiosa com o convite, pois este supõe que eu possa dizer alguma coisa sobre o tema e, alem disso, alguma coisa que interesse ao público envolvido nesse grupo. Claro que essa terminologia “Transtornos Afetivos” não me é propriamente desconhecida, pois cursei uma graduação em enfermagem e lá nós aprendemos, entre outras coisas, os quadros psiquiátricos. Mas como já faz um longo tempo que não me dedico a essa área, percebi que tinha que voltar nos livros e tentar perceber melhor o que se chama hoje por esse nome “transtornos afetivos”.

Descobri que, segundo o CID 10 os Transtornos do humor ou afetivos são transtornos nos quais a perturbação fundamental é uma alteração do humor ou do afeto, no sentido de uma depressão (com ou sem ansiedade associada) ou de uma elação. Envolvem os Episódio maníaco, Transtorno afetivo bipolar, Episódios depressivos, Transtorno depressivo recorrente, Transtornos de humor [afetivos] persistentes e Outros transtornos do humor [afetivos]

Como isso não me pareceu dizer muita coisa, fui procurar o significado dos termos “Afetividade” e “Humor”. Descobri que a Afetividade é a atividade do psiquismo que constitui a vida emocional do ser humano. O Humor, por sua vez, é a tonalidade afetiva que acompanha os processos psíquicos.

Nesse ponto foi que encontrei um significante que começou a se articular em torno de algumas séries, que me permitiu articular uma fala, e vir aqui dizê-la para vocês hoje. Esse significante foi tonalidade. Achei maravilhosa essa definição de afetividade e humor como relacionada àquilo que dá tonalidade à vida, que colore a vida, dando colorido a cognição, às percepções, aos conceitos, etc. É a Afetividade quem atribui valor e representa nossa realidade. Atribui um colorido às nossas experiências. A Afetividade atribui valor a tudo em nossa vida, tudo aquilo que está fora de nós: como os fatos e acontecimentos presentes ou passados; bem como aquilo que está dentro de nós: nossos medos, nossos conflitos, nossos anseios, etc. A medicina chama de Transtornos afetivos às situações em que esse colorido que damos a realidade está ou mais para preto e branco ou tendendo para cores psicodélicas.

Segundo esse sistema, a explicação para isso estaria em alterações orgânicas (anatômicas - lesões cerebrais, funcionais – alterações do fluxo sanguíneo, metabolismo da glicose) neuroquímicas (alterações nos sistemas serotonérgico e dopaminérgico), etc. Não pretendo entrar nessa discussão sobre a causalidade orgânica desses fenômenos. Embora até hoje os estudos realizados tenham sido inconclusivos, nada impede que um dia encontremos uma base orgânica para os processos psíquicos. Já dizia Freud.

Aliás, sabemos que todo sujeito habita um corpo. Ninguém nunca viu um sujeito andando por ai sem corpo. O que vou falar hoje, no entanto, parte do princípio de que esse corpo que habitamos não é pura e simplesmente carne, orgânico. Ele é habitado, permeado, por algo que chamamos de psíquico, e isso extrapola a dimensão orgânica.

Voltemos ao conceito de afetividade. Dissemos que, para a medicina, ela tem a ver com esse colorido que damos a nossas experiências e que quando essa cor está “alterada, transtornada” temos um transtorno de afetividade. Para podemos falar em transtorno, déficit, alteração, precisamos necessariamente partir de um parâmetros de normalidade. Só assim saberemos se algo está alterado para mais ou para menos. Isso implica em que façamos uma pergunta: qual a cor da realidade?

Ai é que entra a questão que já nos coloca em outro plano: a realidade não tem uma cor em si. Pelo menos para nós falantes. Exatamente por que a cor que vamos dar a realidade depende da nossa faculdade de “representação”. Nós não lidamos com as coisas em si, com o mundo objetivo diretamente. Mas com uma realidade mediada pela possibilidade de representá-la. Foi a isso que Freud chamou de “realidade psíquica”. Nessa perspectiva não são os fatos objetivos que contam, mas o modo como nos apropriamos deles, como os significamos, como os vivemos e como os lembramos. Ou como diria o poeta:

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!


O que eu vou abordar aqui só faz sentido dentro de um plano conceitual onde essa premissa é tomada como válida. O que não quer dizer que outras pessoas possam recusá-la.

Bom, então a cor da realidade vai depender da forma como representamos essa realidade. Ocorre que, não existe uma única maneira de representar a realidade. Precisamos acompanhar como isso se processa para podermos abordas as diferentes maneiras de fazê-lo:

Em primeiro lugar, podemos dizer que é impossível representar tudo, em toda experiência a ser representada há sempre algo que se perde. Isso por que para representar precisamos usar palavras e é próprio delas não conseguir dizer tudo. Poderíamos dizer isso de outras maneiras. No texto “Mal-estar na civilização” Freud fala da parcela de satisfação que somos obrigados a deixar de fora para nos constituirmos como humanos. Poderíamos usar também os mitos para nos referir a isso: O mito bíblico fala da perda do paraíso apos o homem provar o fruto proibido. No Banquete de Platão temos o mito dos andróginos que perdem uma de suas metades por tentarem alcançar o Olimpo. Ou ainda, a partir do mito que ficou mais famoso na psicanálise, Édipo, que ao descobrir seu destino incestuoso arranca os próprios olhos.

Enfim, a perda está sempre em jogo quando se trata de representar a realidade e a castração é um dos nomes dessa perda. Além disso, vale ressaltar também que essa perda é algo que afeta o sujeito, mas que é algo que se impõe precisamente no campo do Outro. É a castração do outro (da mãe, vai dizer Freud) que vai angustiar o sujeito, pois obriga-o a se deparar com o fato de que o Outro não é completo, logo o Outro deseja. O que esse outro quer de mim? Essa é a pergunta angustiante com que o sujeito se depara.

Transito entre dois lados
De um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo
Me mostro
Eu canto para quem?


Ocorre que Freud já mostrava que existem pelo menos duas maneiras diferentes de se lidar com essa perda. Uma delas ocorre quando o Eu, a serviço da realidade, se dispõe à afastar (reprimir ou recalcar) um elemento tido como traumático. Numa conferencia proferida nos Estados Unidos, Freud propõe uma metáfora interessante:

“Imaginem que nesta sala e neste auditório, cujo silêncio e cuja atenção eu não saberia louvar suficientemente, se acha no entanto um indivíduo comportando-se de modo inconveniente, perturbando-nos com risotas, conversas e batidas de pé, desviando-me a atenção de minha incumbência. Declaro não poder continuar assim a exposição; diante disso alguns homens vigorosos dentre os presentes se levantam, e após ligeira luta põem o indivíduo fora da porta. Ele está agora `reprimido’ e posso continuar minha exposição.” (Freud, cinco lições de psicanálise, 1910)

Outra possibilidade diferente de perda desse elemento é aquela que Freud chamou Verwerfung e que Lacan traduziu como Foraclusão. Enquanto que na neurose há uma barreira (uma porta, no exemplo de Freud) que se coloca entre o elemento traumático e a consciência fundando um sujeito dividido (consciente e inconsciente); Na Psicose o elemento traumático retorna invadindo a cena, embora sem possibilidade de se integrado simbolicamente a ela.

Ocorre que esse elemento negado não fica passivamente do lado de fora após ser expulso. Ele impõe sua presença, pois a força que imprime ao tentar se satisfazer não cessa nunca. O que vai se definir então é uma diferença na maneira de lidar com o retorno desse elemento excluído - isto é, na reação contra a repressão e no fracasso da repressão.
Grosso modo podemos dizer que na neurose a tentativa de retorno desse elemento envolve o processo de formação de sintomas: no corpo (na histeria), no pensamento (na neurose obsessiva) ou em elementos do mundo externo (fobia). Na psicose o que vamos ter e aquilo que Lacan chamou de um “inconsciente a céu aberto” com todos os fenômenos de invasão experimentados como alucinações, sensações de fragmentação do corpo, fuga e descarrilhamento de idéias, etc.

Mas não se trata de afirmar, como é frequente ouvirmos, que o neurótico está dentro da realidade, enquanto que na psicose, temos alguém que está fora da realidade. Há nesse processo uma perda da realidade objetiva que vai se colocar tanto para o neurótico quanto para o psicótico(2). Ambos vão tentar, portanto, reconstruir essa realidade. Só que, enquanto o neurótico faz isso pela via da fantasia, o psicótico segue o caminho do delírio.
A fantasia vai se colocar para o neurótico como uma lente por onde ele vai olhar o mundo. Uma tela que ele coloca em frente a sua janela, como diz Quinet, e por onde ele vai passar a olhar a realidade como um quadro que ele mesmo pinta:

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...


Nesse quadro, estão todas as possibilidades de relação entre esse sujeito e o objeto que causa seu desejo. Objeto esse que ele elege para substituir o vazio provocado pela perda anteriormente citada, ao mesmo tempo em que se identifica com ele. Ou seja, diante da pergunta “O que esse Outro quer de mim?” o neurótico responde com uma frase que resume a cena onde ele se oferece como objeto para reparar o furo no Outro, gozando dessa posição. É ali também que ele sustenta seu desejo, ao manter esse objeto a uma distancia manejável.

No delírio psicótico não há encenação, mas submissão. Não há a separação do objeto pelo efeito da castração. Há uma equivalência do sujeito como objeto para o Outro. Não há mediação entre sujeito e objeto e o Outro o invade. O Delírio vai ser uma tentativa de reconstrução, de conter essa invasão do Outro.

Agora podemos pensar como isso acontece naqueles quadros que a medicina chama de Transtornos afetivos. Eu não vou utilizar esse termo, pois como vocês já devem ter percebido, o que desenvolvi até agora não se encaixa em termos de uma doença, nem de um transtorno. Mas de algo pelo qual todos nós passamos ao tentar dar conta do que é ser falante.

Tomarei então o significante “depressão”. Como afirma Quinet, esse significante “atualmente reúne sob si uma multidão de sujeitos que assim qualificam seu estado de alma quando se encontram tristes, desanimados, frustrados, enlutados, anoréxicos, apáticos, entediados, impotentes, angustiados, etc.” Virou moda dizer que se tem um diagnóstico de depressão, ou até mesmo de bipolar.

Mas a psicanálise vai se posicionar frente a essa imprecisão diagnóstica demarcando que o que está em jogo quando se fala em depressão podem ser coisas radicalmente distintas. A primeira coisa que precisamos delimitar é que este termo não pode se aplicar da mesma maneira na neurose e na psicose, pois já vimos que se trata de mecanismos bem diferentes. Enquanto que na neurose a depressão aparece como um sinal clinico, na psicose a melancolia (como chamamos a depressão psicótica) vai ser caracterizada como um quadro clínico específico. Em segundo lugar, podemos destacar que o que vai estar em jogo naquilo que chamamos de depressão está relacionado com essas diversas facetas da relação sujeito/objeto.

Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei

Não tem ninguém ao lado...

Freud, no texto intitulado Luto e Melancolia afirma que o afeto característico tanto do luto quanto da melancolia é a tristeza.

O luto, ele diz, é de modo geral, uma reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante.

Pode acontecer de, nos casos de um luto extremamente penoso, haver um desânimo profundo, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade. Nisso tudo o luto pode se aproximar dos sintomas da melancolia, ou depressão psicótica.

No entanto, há nesse ultimo quadro uma coisa que não aparece nas reações de luto: uma extrema depreciação de si mesmo que culmina num delírio de ruína e uma expectativa de auto-punicão:

“O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração por seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível. Não acha que uma mudança se tenha processado nele, mas estende sua autocrítica até o passado, declarando que nunca foi melhor. Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) é completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e - o que é psicologicamente notável - por uma superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida.” (Freud, Luto e Melancolia, 1917)

Segundo Freud, isso ocorre porque enquanto no luto há uma localização dessa perda em algo do mundo externo, na melancolia o que se torna pobre e vazio é o próprio Eu. A perda experienciada é equivalente a algo no próprio Eu. Ou ainda, há uma correspondência entre o próprio eu e o objeto perdido: a sombra do objeto caiu sobre o eu.

Voltando ao quadro diferencial que traçamos entre neurose e psicose, a depressão no neurótico aponta para um abalo na fantasia que este criou para lidar com a falta no outro. Ele acaba tendo que se deparar com a fragilidade dessa construção de alguma maneira, e um dos efeitos disso pode aparecer clinicamente como desânimo, descrença frente aos ideais, etc. Mas no caso da psicose, a depressão culmina num delírio onde a ideação suicida aparece como possibilidade de dar cabo do núcleo do problema: o próprio Eu. 

Freud ressalta ainda a impossibilidade de abalar essa crença psicótica, pois não adianta tentar convencer o sujeito de que ele não é esse quadro tão negro que pinta de si mesmo.
Para finalizar, gostaria de exemplificar rapidamente essa discussão partindo de dois exemplos que podem nos ajudar a compreender o que distinguimos como sintomas depressivos no neurótico e o delírio de ruína na psicose. Um deles trata-se de um caso clinico onde a pessoa chega se queixando de depressão.

Marcélia, 39 anos, procura atendimento com uma queixa de depressão e insônia e diz que faz tratamento médico (paroxetina e clonazepam). Afirma que tudo começou em 2005 quando sofreu um “assédio moral” por parte de seu patrão. Trabalhava há quatro anos numa loja de shopping como caixa e começou a apresentar uma dor nos braços que foi diagnosticada como tendinite.

Ao receber o diagnóstico Marcélia procura o patrão, que sugere que ela peça demissão. Como se recusou, este começou a fazê-la passar por situações constrangedoras como sentar numa cadeira isolada e passar o dia inteiro sentada, sem falar com ninguém. Ela resolveu, então que iria processá-lo e, a partir daí, esperar que “a justiça seja feita”.
Marcélia se define como alguém que sempre foi independente e se virou sozinha, se vê agora impossibilitada de trabalhar. Ela passa a peregrinar por médicos, advogados e psicólogos relacionados à área trabalhista. Nessas suas andanças pela área trabalhista adquire muitas informações sobre “seus direitos”. No entanto, sua inquietação e seu sofrimento derivam do fato de que “as pessoas não acreditam que eu estou doente”. O patrão passa a desmenti-la nas audiências; os médicos não encontram uma lesão demonstrável e isso a incomoda: “queria encontrar um exame que mostrasse que o que sinto é real”. Tem medo de que o patrão consiga ganhar a causa e que assim consiga provar que ela não tem uma doença. Essa possibilidade a angustia terrivelmente. Foi por isso que resolveu buscar atendimento em busca de uma “palavra de médico”.

Ela diz: “pois é, eu fiz de tudo pra agradar a ele, me esforcei muito e passei a trabalhar mais ainda, pra ele não ter o que dizer. Era sempre a última a sair. Mas por mais que eu fizesse ele não reconhecia, reclamava do meu trabalho e ainda desconfiava de mim achando que meu caixa não batia. Eu sempre fazia um ‘a mais’ pra que ele reconhecesse”. Esse “a mais” que Marcélia dá ao patrão é a garantia de sustentação da fantasia que lhe permite velar a falta, colocando-se como objeto na relação com o patrão que goza dela.
Nas associações que se desenrolam ao longo da análise, Marcélia faz uma equivalência entre o lugar que o patrão ocupa e o lugar da mãe que, segundo ela, estava sempre comandando, exigindo dela um trabalho sem faltas. Comando esse a que Marcélia sempre atendia. Assim como também fazia de tudo para fazer um “a mais” pelo patrão. Em ambos os casos, era pra que eles não apontassem sua falta, não reclamassem do trabalho mal feito, pois ela nunca “gostou de ser chamada a atenção”.

Em certa sessão Marcélia chega chateada porque uma colega a chamou de autoritária e diz que não é a primeira vez que isso acontece: “eu não sou autoritária, mas minha voz sai assim. Na verdade eu quero é ajudar as pessoas. Como eu aprendi muito sobre os direitos das pessoas eu gosto de orientar, dar conselhos, pra que as pessoas se conscientizem dos seus direitos. Mas elas acham que eu estou sendo autoritária, querendo mandar.”

A fantasia de Marcélia se estrutura portanto em relação a essa voz de comando, esse ser chamada à atenção. Seguindo o circuito pulsional em torno desse objeto voz, ora ela é chamada, comandada. Ora é ela quem chama, comanda. Na transferência ela também me insere nesse circuito quando passa a esperar de mim uma “palavra de médico”.

Percebemos que, no momento de deflagração dos sintomas de Marcélia, algo acontece nessa relação com o patrão que abala sua fantasia. Esse algo passa pela relação que o patrão estabelece com as outras moças que trabalham na casa (leva-as pra sair, toma cerveja com elas) enquanto Marcélia recusa-se a qualquer envolvimento com os homens (aos quarenta anos permanece virgem) e pela recusa do patrão de acreditar nela, desacreditando seu sintoma (LER), desconfiando dela: ele diz que eu estou mentindo. Só aí é que a depressão aparece como sinal ante à possibilidade de ser desmascarada na justiça por esse homem que denuncia sua falta.

Percebemos ainda que, no caso da neurose, não existe um tipo clínico depressivo, mas sujeitos deprimidos, com suas histórias para contar.

O Outro exemplo, não é propriamente um caso, mas é o excerto da carta de despedida que Virgínia Woolf deixa para seu marido Leonard Woolf antes de se suicidar.

xxx
Meu Muito Querido:
Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis e não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Se alguém pudesse me salvar, esse alguém seria você. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos
V.

xxx

Temos nessa carta de despedida um claro exemplo do que Freud chamou de delírio de ruína do melancólico. Virgínia ao apontar os motivos pelos quais dá cabo de sua vida aponta simplesmente o peso que ela representa na vida do marido, de como ela é um empecilho à vida dele, que ela destrói pelo simples fato de existir.

Aqui percebemos o que Freud quer dizer com “a sombra do objeto recaiu sobre o Eu”, pois a única saída possível que Virgínia encontra em se saber um peso, um fardo, é livrar-se desse peso colocando algumas pedras nos bolsos e se atirando em um rio.

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(1)Texto apresentado no dia 10 de junho de 2011 no Grupo de Estudos em Transtornos Afetivos da Universidade Federal do Ceará
(2)Freud traz um exemplo interessante. Ele diz: “Permitam-me retornar, a título de exemplo, a um caso analisado há muitos anos atrás, em que a paciente, uma jovem, estava enamorada do cunhado. De pé ao lado do leito de morte da irmã, ela ficou horrorizada de ter o pensamento: ‘Agora ele está livre e pode casar comigo.’ Essa cena foi instantaneamente esquecida e assim o processo de regressão, que conduziu a seus sofrimentos histéricos, foi acionado. Exatamente nesse caso é, ademais, instrutivo aprender ao longo de que via a neurose tentou solucionar o conflito. Ela se afastou do valor da mudança que ocorrera na realidade, reprimindo a exigência instintual que havia surgido - isto é, seu amor pelo cunhado. A reação psicótica teria sido uma rejeição do fato da morte da irmã.”