domingo, 3 de julho de 2011

O recalque: de suas primeiras formulações à sua conceitualização

Fabiano Rabêlo
(membro do FCL-Fortaleza, de FCCL-Fortaleza e da EPFCL)

Nesse texto discutiremos os diversos avatares que o recalque assume na obra de Freud, relacionando-o com as experiências fundadoras do dispositivo psicanalítico. Enfatizaremos, com Freud e Lacan, os desdobramentos éticos, técnicos e teóricos dessas experiências.
No prefácio para a segunda edição dos “Estudos sobre a Histeria”, Freud (Breuer et Freud, 1895/2001) recomenda aos interessados pela psicanálise que se iniciem nesse campo com a leitura dos “Estudos”. Diz que aí se encontra a semente (Keim) da experiência psicanalítica (ibidem, p. 23). Lacan (1986) também destaca a importância desse livro. Segundo ele, encontramos nele “uma longa exposição da descoberta da técnica psicanalítica. Ali, vemo-la em formação” (ibidem, p. 73).
Lacan, em referência a esse prefácio escrito por Freud, situa nos “Estudos” o que considera a célula germinal da observação psicanalítica (ibidem, p. 36). Essa célula fundadora, nos diz, pode ser encontrada numa forma particular de indagar a história do indivíduo. Adverte que essa abordagem não objetiva produzir uma historiografia, mas sim restituir a história do sujeito no presente: “o que se trata é menos lembrar do que reescrever a história” (ibidem, 23).
Explica que a reintegração dessa história ultrapassa os limites do indivíduo na medida que se abre para as incidências da linguagem no sujeito. Ao dizer que a história que interessa ao psicanalista possui um caráter transindividual, Lacan aponta para a dimensão da alteridade constitutiva do desejo. Tal alteridade, por sua vez, remete à inscrição no corpo de determinados significantes privilegiados, sucedâneos de exepriências de satisfação que exerceram efeitos marcantes no psiquismo. Podemos nomear esses momentos de trauma e seus efeitos, fixação.
Para Freud, o recalque está no cerne dessa escritura paradoxal do vivido. Ele pressupõe uma modalidade de registro que condiciona o conteúdo inscrito a certas condições de manejo. Por outro lado, toca em elementos que estão no ponto máximo de distensão das possibilidades de elaboração dos excessos de intensidades suportados pelo psiquismo. Esse ponto limite remete-nos à sexualidade, uma vez que é na tomada da posição diante da diferença sexual que o sujeito é confrontado com suas vivências de satisfação mais fundamentais.
Vinte anos depois dos “Estudos”, em resposta a Jung, que propunha a primazia de uma energia dessexualizada, Freud (1914/1999) reafirma a tese da etiologia sexual das neuroses e indica que o ensino do recalque (Verdrängungslehre) deve ser tomado como a pedra angular (Grundpfeiler) do edifício psicanalítico. Continua: “o recalque não é só a pedra angular, é a parte mais essencial (“wesentlichste”) desse edifício”. Em seguida, refere-se ao processo de formulação do recalque: diz que ele “não é nada mais que a expressão teórica de uma experiência que pode ser repetida quando se abandona o uso da hipnose na análise de neuróticos” (ibidem, p. 54).
Após refutar argumentos de críticos e colaboradores, que indentificavam em elementos da filosofia, da biologia e da psicologia a raiz dos pressupostos da psicanálise, Freud sai em defesa da originalide do conceito de recalque: “O ensino do recalque é uma aquisição do trabalho psicanálítico obtido de modo légitmo como extrato teórico a partir de muitas e incontáveis (unbestimmt) experiências” (ibidem, p.55).
Pedra angular, mas também produto de uma praxis (e não seu pressuposto): eis o lugar peculiar do recalque na psicanálise. Podemos dizer daí que o recalque serviu como referência técnica à prática psicanalítica bem antes de sua conceitualização. As primeiras formas de concebê-lo são solidárias às torções de discurso que culminaram na demonstração do saber inconsciente.
É apenas nos artigos metapsicológicos que Freud (1915/1997) desenvolve uma coneituação para o recalque. Ele o define como algo que se situa entre a fuga (Flucht) e o julgamento de condenação (Verurteilung, Urteilsverwerfung). Declara como condição para o recalque que a obtenção de uma finalidade pulsional (Erreichung eines triebzieles) cause desprazer (Unlust) ao invés de prazer (Lust) (ibidem, p. 107). Temos então um cálculo de economia psíquica: os motivos de desprazer (Unlustmotiv) devem se apresentar como mais relevantes do que o prazer da satisfação (Befriedigungslust) (ibidem, p. 108). Destaca ainda que o recalque não é um mecanismo de defesa constitucional (Ursprunglich Vorhandener Abwehrmechanismus). Para ele existir, faz-se necessário a intervenção da linguagem e do Outro, ocasionando a divisão entre Inconsciente e Consciente.
Sua essência consiste em expulsar e manter afastada do Consciente (Abweisung und fernhaltung des Bewussten) (ibidem, p. 108) as manifestações psíquicas do Insconsciente. O recalque busca fazer isso separando a representação do afeto.
Para concluir, apontamos a leitura dos “Estudos” como uma oportunidade de acompanharmos Freud na exposição de algumas das incontáveis torções produzidas nos casos clínicos que conduziu. Uma primeira concepção de recalque surge como produto desse caminho de investigação.

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Bibliografia

BREUER, Josef et FREUD, Sigmund. (1895) Studien über Histerie [Estudos Sobre histeria]. Frankfurt am Main: Fischer Verlag Taschenbuch, 2001.

FREUD, Sigmund. (1914) Zur Geschichite der Psychoanalitische Bewegung [Sobre a história do movimento psicanalítico]. In: GW. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 2000. v. X, p. 43-113.

FREUD, Sigmund. (1915) Die Verdrängung [O recalque]. In: Studienausgabe. Band III. Frankfurt a. M.: S. Fischer, 1997. v. III, p. 103-118.

LACAN, Jacques. O seminário - livro 1: Os Escritos Técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. 1986.

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