6 – 9 Julho de 2012
Prelúdio 3:
Ana Laura Prates
Em 1969, Lacan escreveu que em sua concepção, “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”: a verdade do casal parental. O emprego do verbo responder atribuído à posição da criança, nesse contexto, pode ter também o sentido de corresponder, tal como no poema de Baudelaire1 Correspondences: Lês parfums, les coulers et les sons se répondent.2 Essa correspondência entre o Outro e o sujeito, remete ao irredutível da transmissão de um desejo que não seja anônimo3.
Há uma topologia na transmissão, que reforça sua conotação de envio, de algo que passa de um lugar para outro. Aqui, lembramos d’ A Carta Roubada, de Edgar Alain Poe e do Seminário que Lacan lhe dedica: aquilo que falta em seu lugar é o simbólico, já que o real o leva colado na sola. Quando se trata do sujeito do inconsciente, do desejo e da falta, a carta – em sua eficácia simbólica – sempre chega a seu destino. Ora, se cabe ao Outro transmitir a castração, cabe ao sujeito, a resposta. Num primeiro momento, poderíamos afirmar que a resposta do sujeito à falta do Outro é a fantasia, que sustenta o sintoma enquanto metáfora. Mas Lacan avança do passo de sentido da metáfora ao sem sentido do gozo. Se a partir da letra (carta), enquanto distinta do significante, podemos escrever o discurso sem palavras, é porque há uma impossibilidade lógica do lado do pai. É lá onde o pai é um lugar “vazio e sem comunicação” 4 (sem resposta) que ele exerce sua função de transmissão, não somente do sentido que insiste e consiste, mas, sobretudo de uma orientação que aponta para o real que ex-siste e para A mulher que não existe. À verdade do casal parental – não há relação sexual –, o sujeito, resposta do real, co-responde com o sintoma, um modo singular de gozo.
É com essa carta na manga que se chega ao psicanalista, aquele cuja oferta possibilita a escrita do único discurso que agencia o objto a no lugar do semblante. Eis a possibilidade inédita de um dispositivo que acolhendo a co-respondência entre o sujeito e o Outro permitirá, entretanto, a escrita de uma carta (letra) que não seja mais uma « roubada ». Não é que Lacan alce o analista – como queria Derrida – no lugar do « carteiro da verdade ». Longe disso!
Qual é, então, a resposta do analista frente aos modos redutivos da demanda neurótica que operam a exclusão do real como impossível? O analista, com seu ato, responde com “a equivocidade pela qual cada alíngua se distingue”5. Assim, se a resposta do analista – radicalmente original na civilização – resgata por um lado a correspondência estraviada entre o sujeito e o Outro, é tão somente para embaralhar suas letras esvaziando seu sentido. É a prática do analista que “deve dar conta de que haja cortes do discurso tais que modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente” 6. Eis a po(ética) do ato analítico. Em 1977, Lacan lança uma provocação: seria, o Psicanalista, poeta o suficiente? Aqui, a resposta da interpretação encontra a via pela qual se privilegia a homofonia e os jogos com a língua. Esses jogos, segundo Lacan, “os poetas os calculam e o psicanalista se serve deles onde convém”7. A suficiência poética do psicanalista, portanto, está, desde sempre, no cálculo tático e na conveniência da resposta à orientação real do nó bo que foraclui o sentido. À homofonia, poderíamos acrescenta a homonímia e o jogo interlínguas, cujo paradigma é o texto de Joyce. Diz-se que o texto de Joyce não tem sentido. Com efeito, no nível semântico, há um fracasso patente na significação. Mas, quanto ao sentido, há uma proliferação tão grande que ele perde o valor, apontando então para o ab-sens. Não se trata de modo algum de uma escrita automática. Cada frase de Joyce foi construída como uma escultura, de modo totalmente artificial e calculado. Lacan faz disso uma espécie de paradigma metodológico: passar pelo sentido, usa-lo até gastar e deslocar seu peso para o peso do real.
Ora, se a correspondência entre a linguagem e o real é da ordem do impossível, se a transmissão integral é impossível, a pergunta que não se cala é qual a resposta ética do psicanalista quando o destino da mensagem passa a ser o ab-sens da relação sexual humana, tomada pelas palavras? Essa é a questão clínica e ética essencial: a psicanálise não visa tanto a verdade por traz do que isso quer dizer mas, antes, o fato de “que se diga”. Assim, borra-se a diferença entre a verdade e a escroqueria. Mas, atenção: essa despretensão da verdade não justifica em absoluto um relativismo da desconstrução, já que as “verdades mentirosas” apontam todas para o real de que o gozo é a castração. Eis a ousadia clínica e ética que a Psicanálise oferece: A aposta no bem dizer como resposta do psicanalista frente ao impossível de dizer tudo é o que se espera da clínica do passe. Nas palavras de Seprum: “Só o artifício de um relato que se possa controlar conseguirá transmitir parcialmente a verdade do testemunho”.8 A construção de um artifício, emprestar a materialidade da letra ao testemunho não é, portanto, algo espontâneo e exige um desejo decisão, lá onde não há Outro que responda, nem sujeito que corresponda. Lá onde não há carteiro da verdade há, entretanto algo que a letra/carta carrega: “A borda do furo no saber, não é isso que a letra desenha?”9
Estamos, em nossa Escola, enfrentando o desafio de responder à questão sobre quais as conseqüências de sustentar essa aposta, dando voz ao testemunho, amplificando nossos sussurros na Polis, sem nos resignarmos ao “mutismo aflito”10, como tão bem ilustra a magnífica foto da instalação de Anish Kapoor no cartaz de nosso Encontro.
1 Baudelaire (1961). Les fleurs du mal. Paris, Librairie Marcel Didier.
2 Devo essa observação e a referência a esse poema a Sílmia Sobreira.
3 Lacan, Nota sobre a criança. (1969) In: Outros Escritos.
4 Lacan, O Seminário – livro 17 O avesso da psicanálise.
5 LACAN, J. O Aturdito. In Outros Escritos, p.492
6 LACAN, J. O Aturdito. In op. Cit. p. 479
7 LACAN, J. O Aturdito. In op. Cit. p. 493.
8 SEPRUM, J. A Escrita ou a vida. São Paulo, Companhia da Letras, p. 22
9 LACAN, J. Lituraterra. In op.Cit.
10 SOLER, C. As condições do ato, como reconhecê-las? In: Wunsh n. 8
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