terça-feira, 18 de junho de 2013

XIV Encontro da EPFCL - Belo Horizonte





PRELÚDIO 2

“Édipo em Colono” um Paradigma para a Errância do Desejo

                                                                                              Christian Ingo Lenz Dunker

Se Freud fez de Édipo Rei o paradigma da subjetividade dividida entre o filho e o homem, entre a mulher e a mãe, e se Lacan tornou Antígona, filha de Édipo, modelo fundamental do desejo decidido e do ato ético para a psicanálise, nossa época talvez devesse voltar os olhos para Édipo em Colona, como narrativa fundamental acerca da imigração, do refugiado, daquele que está sem lugar. Se Édipo Rei é a história da conquista e perda de um lugar, sobredeterminado pelo poder e pela filiação, e se Antígona é uma trajetória em torno do destino do corpo de um irmão e seu direito a ter seu lugar, entre os mortos e com um funeral apropriado, Édipo em Colono é a história de errância e indeterminação.
Escrita por Sófocles 18 anos após Édipo Rei e Antígona, o terceiro termo da trilogia tebana conta o que acontece com Édipo entre as duas tragédias mais conhecidas. Depois de cego ele ruma para o leste, na companhia de Antígona, murmurando “me phynai” (melhor não ter existido).  A primeira etapa da viagem, a travessia do deserto, termina no bosque de Colona, nos arredores de Atenas. Arredor, subúrbio, ainda não na cidade, mas também não fora dela. Eis nosso herói neste lugar de passagem, de entrância, de fronteira. Neste lugar ele é recebido pelos anciãos como um perigo potencial. Amaldiçoado pelos deuses ele certamente trará o pior. É quando sua filha, Ismene (irmão de Antígona) traz a notícia de que o oráculo de Delfos (o mesmo que previra a maldição de Tebas) de que a cidade que abrigasse o corpo de Édipo seria protegida pelos deuses.
Venho para oferecer-te meu sofrido corpo; ele é desagradável para quem o vê, mas o proveito que poderá trazer torna-o mais valioso que o corpo mais belo.[1]
Desterrado, sem lugar e segregado em vida ele passaria a ser o signo de uma proteção para o lugar que o acolhesse em morte. Interessado neste benefício, Teseu, o rei de Atenas, manda construir um santuário para Édipo e o defende das tentativas de Creonte, de levá-lo de volta a Tebas. Seu próprio filho Polinice assume o trono de Tebas planejando trazer o pai de volta.
Entre Tebas e Atenas, entre Ismene e Antígona, entre Policine e Etéócles, entre Teseu e Creonte, Édipo em Colona é a tragédia do exílio, do marginal, daquele que está para além da perda e da recuperação de um lugar, mas que se tornou ele mesmo “sem lugar”.
Filha do velho Édipo, a que lugar chegamos, Antígona? A que cidade? De que povo é essa terra? Quem irá oferecer a Édipo sem rumo uma mísera esmola? Peço tão pouco e me dão menos que esse pouco e isso basta-me; de fato, os sofrimentos, a longa convivência e meu altivo espírito me ensinam a ser paciente.[2]
Se Édipo Rei é a tragédia do sofrimento gerado pelo pacto e sua violação, e seAntígona é a tragédia daquela que denuncia a insuficiência da lei, Édipo em Colona é a verdadeira história sobre o estado de exceção, do sem papel, daquele que se encontra para além e para aquém da lei.  Édipo em Colona, (de onde deriva a palavra “colônia”), são os loucos, os indígenas, os sem-terra, os desterrados. De todos aqueles que valem mais mortos do que vivos.
É por isso que a tão cobiçada morte de Édipo é recoberta de mistério. Como Enoque e Elias, Édipo talvez tenha sido tragado para o interior da terra, ou então meramente desaparecido. Esta indeterminação pode ser atribuída em parte à maldição de Édipo desfere contra seus filhos. O motivo de sua ira não é muito claro entre os comentadores, no entanto há um escólio ao verso 1375 que sugere que a maldição decorre do fato de que os filhos que habitualmente traziam-lhe alimento proveniente de sacrifício, uma omoplata, por exemplo.  Em determinada ocasião os filhos, por afronta ou esquecimento trazem-lhe uma coxa[3] (alusão ao patronímico familiar). Édipo se enfurece e roga a praga contra os filhos. Observe-se como a praga envolve uma antropofagia simbólica, como se os filhos houvessem esquecido o significante que marca a sua própria linhagem. Há uma segunda leitura que afirma que a maldição decorre da cobiça que os filhos demonstram em relação ao poder do lugar, o poder que adviria da hospedagem funerária do corpo de Édipo. Daí que este tenha escolhido manter secreto este lugar, ou ainda, que Édipo teria sido tragado para o interior da terra para se reunir aos monstros ctônicos inhumanos como a Sphinx e a Píton.
A tumba de Édipo, assim como a de Moisés, pode estar vazia. Mas sua ausência não deixa de ser causa eficiente na narrativa.  Assim também o trono de Tebas se torna um trono transitório, de posse precária e sazonal. Etéocles e Polinice fazem um pacto pelo qual cada um governaria Tebas por um ano e assim sucessivamente. Mas já no primeiro ano Etéocles recusa-se a entregar o poder e expulsa Polinice, repetindo assim a saga da exclusão que incidira em seu pai Édipo e depois cairá sobre sua irmã Antígona. Polinice se refugia em Argos de onde volta com sete exércitos para tomar a cidade de sete portas. Mas Tebas resiste ao cerco criando o impasse e postergando indefinidamente o estado de sítio. Decide-se então que os dois líderes devem se enfrentar poupando assim o sacrifício do povo.  É desta maneira que restam insepultos os corpos dos dois irmão nas cercanias da cidade.   Creonte assume o trono e declara que Etéocles deve ser enterrado com todas as honras enquanto o corpo de Polinice deve ser deixado aos abutres, mais que morto, será esquecido, como se jamais tivesse existido. Simetricamente a seu pai e irmão,  Polinice não terá lugar, seu corpo é apenas carne, não signo simbólico de uma existência. Também simetricamente a seu pai e irmão,  Etéocles, sofre as consequências do apego ao poder e os efeitos da violação de um pacto. Contudo ambos insepultos estão no entorno da cidade, aguardando seu destino. Na fronteira entre o dentro e o fora, assim o lugar onde se situa Colona. A tragédia de Antígona começa pela recusa da protagonista em aceitar o edito de Creonte e pelo seu desejo decidido de que é justo que Polinice receba as mesmas honras de Etéocles.
Ao contrário das duas peças anteriores, Édipo em Colona distancia-se da oposição entre o excesso (hibris) e o erro (hamartia ) na composição do destino (Moira). Édipo se torna um homem cego, envelhecido e prudente (phronésis) que não mais luta contra seu destino ou contra as leis da pólis.

[1] Édipo em Colona, p. 137, v. 636-639.
2 SÓFOCLES. A Trilogia Tebana (406 a.c.)  Édipo Rei, Édipo em Colona, Antígona. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. Mário da Gama Kury (trad.), 103:1-6.
3 Serra, O. (2007) O Reinado de Édipo. Brasília: UNB-Universa:539.


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