Prelúdio 2
Mario Binasco
J. Lacan, em 1967, escreveu esta frase bastante enigmática que sempre me abalou: “Quando a psicanálise houver deposto rendido as armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização (mal-estar que Freud pressentia) é que serão retomadas – por quem? – as indicações de meus Escritos. ”
Enigmática e surpreendente porque se exprime no indicativo (apesar de estar no futuro do subjuntivo) e não na eventualidade hipotética do subjuntivo; então afirma a existência de impasses e, além disso, crescentes, na civilização, capazes de depor as armas à psicanálise (lembro-me aqui que Lacan chamou sua Escola de “uma base de operações sobre o mal-estar da civilização”) ; e, ainda porque Lacan, paradoxalmente, parece dizer que somente após essa rendição “quem?” – isto é um sujeito por vir, ainda não determinado e, de qualquer modo, não qualificado como um analista – poderá “retomar” as indicações de seus Escritos.
Dado que a análise opera por meio de um laço, os impasses que podem levá-la a se render devem impedir este laço de operar. Alguém já viu análises em um campo de concentração, ou em uma situação semelhante? Eis um testemunho interessante, se houvesse.
A experiência da análise, a cura analítica, se estabelece a partir de um laço especial, duplo, um laço de laço: um primeiro laço, a transferência, e um segundo, o ato do analista como torção ou corte: dupla operação de laço ou laço que comporta mais momentos.
Oferta, demanda: este laço surge de um mercado de “relações”, vale dizer, do laços humanos de fala e linguagem: pode-se também dizer que este laço cria um mercado, o faz surgir, institui um mercado ao mesmo tempo que um laço.
Há condições para se instituir este mercado? E qual a relação isso tem com o mercado mais amplo que é agora a instituição globalizada em que circulam (ligam-se?) os humanos? E quais relações com o político, reduzido atualmente a um advérbio, o “politicamente” correto? Outra frase para mim enigmática de Lacan parecia um presságio, “um ensaio digno de Lamennais sobre a indiferença em matéria de política” : Eu não poderia dizer se Lacan espera, neste texto, esse tipo de indiferença, mas creio que, de qualquer modo, isso seria possível apenas na medida em que a política continua a ser, por sua vez, indiferente à psicanálise: mal essa começa a se interessar por ela, as condições para a indiferença se mantêm ainda?
Freud se sentiu compelido a escrever A Questão da Análise Leiga em 1926 a partir de um ativismo normativo do estado austríaco republicano sobre a autorização para exercer a psicanálise: e, neste ensaio, ele reafirma o caráter sui generis e sui iuris da própria psicanálise e de sua formação, no confronto com outros discursos (o médico, o religioso,…), esperando que ela pudesse viver no espaço social do que é permitido, e, portanto, nem vetado nem obrigatório.
Sabemos que, na América, os analistas não seguiram o seu conselho; e que a Alemanha, no decurso de uma rápida nazificação, conheceu a primeira tentativa por parte de um Estado para assumir a psicanálise “traduzindo-a” e dissolvendo-a em um conjunto de psicoterapias: vide a história, instrutiva e interessante para a sua atualidade, do Instituto Goering de psicoterapeutas alemães. Para silenciar os analistas (judeus, mas não só eles) surpresos pela iniciativa ideológica-administrativa do Estado totalitário.
Eu mesmo, aliás, nos países da Europa Oriental, tive a oportunidade de conhecer de perto os efeitos da esterilização (ressecamento) da psicanálise – exercício, formação, transmissão – produtos do contexto ideológico-burocrático-econômico desses países. Nestes três casos, o impedimento para a psicanálise derivava de diferentes tipos de negação e limitação da liberdade nas formas sociais sobre as quais deve necessariamente se apoiar para existir como prática: a proibição da profissão livre, ou o seu excesso de regulamentação segundo critérios que não são de autonomia, ou a negação da liberdade econômica ou de associação, que são todas essas condições que trazem fortes handcaps.
Parece-me incontestável que a psicanálise necessite em todos os casos de uma condição de liberdade: a liberdade ao ponto de instaurar este laço especial, este laço ou nó entre a oferta-demanda e demanda-oferta, o que – tratando-se de um espaço social – deve levar em conta as condições que são ao mesmo tempo externas (coletivo) e internas (subjetivo): sabemos bem que são o mesmo (ou pelo menos que estão relacionados), eu só quero sublinhar que o espaço de autonomia, sui iuris, que permite o estabelecimento de discurso analítico deve ser estabelecida e conquistada de “dentro”, até mesmo antes e prioritariamente que pelo “externo”. De fato, a regulação estatal não é apenas econômica, mas também ideológico e diria até mesmo mental. Abrir com o próprio ato o espaço do discurso analítico implica, portanto, também uma operação sobre a mentalidade.
Hoje, podemos notar melhor que esta regulação pertence a todos os estados e ao caráter totalitário que agora assumiu a administração burocrática, mesmo em Estados que dizem querer exportar a liberdade. É propriamente esta regulação que se insinua na economia do sujeito e de seus laços como um campo de oferta-demanda que o Estado não quer deixar à iniciativa e à responsabilidade do sujeito: à sua liberdade de iniciativa – essencial na oferta / demanda psicanalítica – sem a qual não se vê como poderíamos até mesmo falar sobre o ato analítico ou sobre a experiência analítica: iniciativa de relação ou de laço – do discurso, portanto – independentemente da forma econômica que essa possa tomar, que todavia, não pode ser qualquer que seja, sem estrutura.
Como se verifica hoje, a entrada do Estado neste campo? Tramita normas econômicas e, sobretudo deontologias que penalizam de partida esta iniciativa. Nas últimas décadas, isso aconteceu atacando a relação problemática entre psicanálise e terapia, regulamentando a psicoterapia e a sua formação através de associações profissionais. Na Itália, hoje, o resultado é o seguinte: em termos de formação, na medida em que esta se baseia em escolas de psicoterapia, e a jurisprudência recente assimilou psicanálise à psicoterapia, segue-se que as condições institucionais e administrativas da formação de numerosos analistas estão nas mãos de não-analistas, dirigentes das associações de psicólogos. E no tocante à supervisão individual daqueles que praticam a análise, permitimos que se estabelecesse na Itália um código deontológico genérico e ideológico, que não permite discernir as situações efetivas de suas eventuais transgressões, prestando-se bem para as interpretações mais arbitrárias por parte de qualquer burocracia judicial- administrativa. Burocracia de não-analistas sensíveis às sirenes do poder de julgar e às ocasiões de suspender alguém da prática; burocracia que provavelmente consideraria inaceitáveis “eticamente” a maioria das invenções “técnicas” de Lacan – uma vez que tivesse decidido inquerir e perseguir alguns analistas. O fato é que o ato psicanalítico não pode fazer pouco do sujeito posto em causa de sua causa, ao passo que cada administração (discurso universitário), contaminada pelo discurso capitalista (segundo a proposta de Marc Strauss), colabora para a sua supressão.
Neste quadro, o psicanalista é desde o início culpado. Isto pode ajudá-lo a retomar clinicamente como questão capital de nosso tempo a questão do sentimento inconsciente de culpa, da culpa inconsciente, do “desejo de punição” freudiano. Especialmente em uma sociedade ou civilização que aboliu de fato a “rastreabilidade” subjetiva de culpa e de responsabilidade e que constrói a sua administração e suas leis em torno de uma concepção de direitos que procede do axioma de que o real é, enquanto tal, injusto (quer se trate do corpo, do sexo, do Outro, etc.) e que faz então dos “novos” direitos uma espécie de indenização consolatória delirante, uma verdadeira e própria “terapia reparativa” da condição de injustiça fundamental que é a divisão do sujeito, e ainda mais o seu estatuto real ou a sua relação com o real. Uma refutação social / simbólica de cada destituição subjetiva que pode chegar até a negação de tudo aquilo a que o sujeito é reduzido na contaminação dos outros discursos pelo discurso capitalista.
Lembro-me ainda de ter ouvido, há 15 anos, o diretor de uma associação mundial de psicanálise lamentar-se de que não o seguiram o suficiente em suas sugestões para tomar partido a favor do reconhecimento social das uniões homossexuais, o que segundo ele fundamentava-se na doutrina analítica: de fato, ele disse, a prática também nos mostra laços autênticos entre esses sujeitos. Então os psicanalistas devem autorizar-se a fornecer ao Estado certificados de autenticidade dos laços amorosos e afetivos? Após haver reinvidicado o escopo crítico e subversivo da análise e depois de décadas passadas a criticar os analistas americanos por sua insistência em idealizar o amor autêntico?
Aqui o problema não são essas uniões, o que não considera o analista como tal e que são apenas moda e onda escolhida do poder que norteiam a dança da globalização antropológica capitalista: o problema está na agressiva, feroz, totalitária política de supressão do sujeito que se acompanha a essa onda, na exigência de calar cada perplexidade e até mesmo toda a complexidade e divisão, no interdito cultural social e científico de ter em conta qualquer fenômeno real que se desvie ou também que traga a distração da propaganda (notar a total impotência para lidar com a questão colocada pelo Estado islâmico, que também parece estar em contradição com o discurso de direito).
Como podemos pensar que este tipo de política que se infiltra e contamina toda a administração de todas as áreas de nossas vidas, seja compatível com a prática de um laço social que cria e protege a regra de dizer qualquer coisa?
Mesmo os analistas americanos acreditavam fazer bem para a psicanálise ignorando a recomendação de Freud no texto A Questão da Análise Leiga para não deixar a análise nas mãos dos médicos, e seguindo o que lhes parecia a maneira mais (bem) sensata, aquela calcada no bom senso do caráter da sociedade americana, que parecia proporcionar mais comodidade e desenvolvimento para a psicanálise. E, em 1967, Lacan declara seu fracasso em “desbloquear o aprisionamento do pensamento analítico” …
Um discurso, então, que se propusesse a reabilitar o sujeito via castração – como o discurso analítico – vai em contrapartida a toda refutação supressiva do sujeito que ocorre nas diferentes formas que derivam da contaminação dos discursos pelo discurso capitalista; como impedir os anticorpos da civilização que se opõem à proposta de um laço que permite dizer bem e levar em conta a castração?
Uma recusa como essa não deve dar lugar a qualquer retorno que seja mal-dizer no campo do real? O real da clínica, quero dizer: por pouco que os sujeitos se prestem a esta rejeição do inconsciente que lhes vêm proposta ou imposta, acabam assistindo seus retornos maníacos – que já estão previstos e inscritos nas características da mentalidade consumista, maníaca, precisamente – “retorna” (a ser avaliada clinicamente), no lugar da melancolia ou da depressão. Correspondentes, estes, àquilo a que o sujeito se sente socialmente reduzido, a um resto não reciclável, a uma ossada (carcaça), como sugerido por Marc Strauss: a carcaça que, então, merece a tortura a que possa estar sujeita, e que merece ser “beneficiada” ou eliminado da natureza da qual ele é o fator poluente, como em um ecologismo extremo. Coisa delicada, porque a singularidade do sujeito em torno do qual opera a análise é essa mesma, no fundo, não reciclável.
A mídia e a burocracia judicial não fazer outra coisa que acusar o sujeito em todos os níveis: acusá-lo de existir, de pensar, de desejar, de ter um inconsciente, de ter uma posição que não se reduz ao valor instrumental ao qual se reduz o discurso corrente. Se para Freud – Lacan disse – era “um fato de caridade incrível” atribuir para cada um um inconsciente, pode um analista proceder de maneira diferente? Como poderia revelar um des-abonamento eventual ao inconsciente, quando o encontra?
E por mais que o discurso dominante proponha à mentalidade do seu politicamente correto como um modelo de covardia generalizada, mais uma vez não devemos talvez esperar o contragolpe, na identificação de culpados na realidade atual que te fazem ceder de seu desejo? (Portanto, neuroses que poderiam ser atuais e de defesa, para retomar uma velha distinção de Freud, proposta novamente por Sidi Askofaré em Milão?). Mesmo aqui, não é inútil recordar que a noção de politicamente correto remonta ao período entre as duas guerras; e que o primeiro decreto de Hitler chanceler do Reich estabeleceu métodos “humanitários” para cozinhar lagosta. Somos nós, os seres humanos, que somos pregados ao nosso ser de carniça, à nossa maldade.
A psicanálise oferece a isso um modo bem diverso de “reciclagem”, mas que deve ter cuidado desde o início quanto ao sentimento de culpa inconsciente correlativo à produção capitalista da falta a gozar: e o impossível do sujeito negado retorna em um sentimento de culpa a priori que está bem longe de ser mesmo reconhecido como tal. Somos culpados se não concordamos com o discurso dos outros e, se estamos de acordo, então este discurso nos faz culpado: convergência do super-eu de Freud com aquele de Lacan. As características de ambos pode ser reconhecido, me parece, no politicamente correto, uma vez que participa da versão atual do supereu na civilização.
Mario Binasco, abril 2015.
Tradução Ana Paula Ganesi, Revisão Ana Paula Pires
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