O que é que desfaz os laços?
Diego Mautino
1. Preliminar
O Próximo Encontro nos convoca a partir do título “Laços e desenlaces segundo a clínica psicanalítica”.[1] Em italiano, propusemos “Legami e slegature…” para expressar o interesse destes dois termos, que abrem para o que está enlaçado ou não das três dimensões R, S e I. Isso permite introduzir, ao mesmo tempo, no Campo lacaniano, quer a problemática do enodar e do desenodar-se borromeano, quer a problemática dos laços humanos. Se tivéssemos eleito como título “enodamentos e desenodamentos”, poderia ter sido muito limitador no que diz respeito ao nó borromeano, com o risco de fazermos esquecer os nós do amor. “Enlaces” designa prioritariamente os vínculos de amor, mas também conserva um sentido mais geral; traduzimos “desenlaces” por slegature, pouco usado, mas bem compreensível, e tem a vantagem de ser uma palavra que já existe em italiano, diferente, por exemplo, de slegàmi, que não existe. Além disso, o uso pouco frequente deixa aberto o que se trata de enlaçar ou desenlaçar, permitindo incluir o enodar e desenodar nós, ou os laços sociais. Se tivéssemos escolhido “Enlaces e desenlaces na clínica psicanalítica”, nos teríamos limitado ao tema dos dramas e do desenlace [dénouement] da transferência nas análises; “segundo a clínica psicanalítica”, entretanto, amplia o tema, permitindo considerar não apenas o que se passa no interior das curas analíticas.
A experiência da psicanálise procede do mal-estar na cultura e a épica dramática de nosso tempo confirma isso de modo contundente. Evoco somente desenlaces, conclusões, rupturas, o desfazer-se em soma dos laços, experimentado no trabalho, a família, as relações amorosas, a falta de estabilidade generalizada das agregações sociais, as relações efêmeras, a solidão, a precariedade e a inermidade diante de uma violência generalizada… Interrogar o que é que desfaz os laços pressupõe uma hipótese preliminar sobre o que, em contrapartida, enoda, enlaça, faz vínculos. Como nos lembra Colette Soler na Apresentação,[2] o tema do fazer-se e desfazer-se dos vínculos sociais surgiu na psicanálise desde o início, quando Freud, seguindo a palavra dos analisantes que o consultavam, reanimou o antigo par Eros, deus da união, e Tânatos, potência “demoníaca” que dissocia.
Lacan repensa e relança a experiência freudiana em termos de linguagem, discurso e nós, com os quais reordena o fazer-se e desfazer-se dos laços. Primeiro, ordena as “agregações do Eros” a partir da cadeia da linguagem, mediante demanda e desejo. Depois, escreve a estrutura do discurso, estabelecendo quatro diferentes laços sociais. Por fim, recorre ao nó borromeano para tratar o “sujeito real” no ato do dizer.
2. O sintoma: não há dois sem três
Freud encontra no sintoma a função de uma satisfação substitutiva, assumida ou rechaçada, que Lacan condensa na fórmula “não há relação sexual”; nós dizemos suplência produzida pela falta de relação. Ali onde o significante que inscreveria o gozo entre os corpos falantes falta, algo – uma frase, uma cena, um traço – fixado por uma contingência forja as condições de gozo. A verdade, como causa reprimida do sintoma, é solidária com a hipótese do inconsciente linguagem; ela fala com os significantes articulados na cadeia do dizer, mas não se confunde com os ditos, estando reprimida, tem que ser produzido com os ditos. Essa causa implica também algo que vem do real do trauma e objeta o nó de gozo com um semelhante – Lacan escreve: “há Um” [Y a d’l’Un], precisando que isso não faz laço.
Ao mesmo tempo em que restitui o dizer de Freud com a fórmula “não há relação sexual”, Lacan nota que o ser falante tem, por outro lado, uma relação com o próprio corpo, do tipo da adoração. A primeira fórmula [“não há relação sexual”] sublinha aquilo que falta para escrever uma relação entre os sexos, escreve, então, “a maldição sobre o sexo”;[3] a segunda, “há Um” [Y a d’l’Un], diferentemente da negatividade da primeira, parece, em contrapartida, uma positividade real – ainda que não prazerosa, porque não representa o sujeito, já que se inscreve no campo do gozo. “Há Um” é o que se repete como “encontro falho”. Isso leva Lacan até a afirmar, em Televisão, que a repetição é… a felicidade do sujeito. “Todo encontro é bom para se repetir”[4] porque, em todo caso, isso perdura como Um só. O que se repete finalmente no encontro falho é… a não relação com o Outro.
Quais são essas coisas das quais a psicanálise se ocupa e às quais o real se põe atravessado e não deixa nunca de se repetir? São as coisas do amor, aquelas dos laços entre homens e mulheres e, o que se põe atravessado para impedir que as coisas procedam, o que é senão o real definido pela impossibilidade de escrever a relação? A fórmula “não há relação sexual” é signo do real da não relação, uma modalidade de gozo particular fixada pelo trauma. Gozo Um que provém da não relação. O Uno do gozo que se inscreve nas análises demonstra o impossível de escrever da não relação, é o sentido da não relação. Ou seja, “que no ciframento está o gozo, sexual decerto, […] isso é que que é obstáculo à relação sexual estabelecida, e portanto, a que algum dia se possa escrever […]”[5].
III. O sinthoma: de três a quatro.
Que o sentido do sintoma seja o real, na medida em que se põe atravessado, pode permitir enodar uma função do sintoma que não estava na definição do sintoma como metáfora. Não se pode dizer o verdadeiro do real e, não obstante, o sintoma revela o real, é signo do real da não relação, mostra uma modalidade de gozo particular, fixada pelo trauma. Este Um do gozo do sintoma toma o sentido da não relação, é uma suplência à falta de gozo que inscreveria a relação sexual.
Como entender o que Lacan diz quando diz que “a missão do analista é ir contra o real”[6]? Isso quer dizer opor-se ao impossível do vínculo social, fazer oposição, então, ao sintoma de proletário ao qual o reduz o discurso capitalista ao deixá-lo sem meios para fazer laço? Como pode responder o psicanalista para fazer valer o laço estabelecido por seu discurso? O analista pode intervir com a oferta de uma interpretação que não se contente com a verdade e que leve em conta o real, condição para fazer virar da impotência ao impossível.[7]
No início da análise, o ato de um-dizer pode opor-se ao que vem do real no desfazer-se dos laços, e no fim? Lacan mostra que o fim de análise é a inscrição de um furo no qual o sujeito possa tomar parte como objeto a. Um furo que faz nó com a co-incidencia de três furos (R,S,I). A partir do seminário RSI [1974-1975], mostrará outro nó: um nó de quatro – no qual o quarto elemento [sinthoma] adquire função de suplência. O que é que pode manter juntas as três consistências transportadas pela palavra… um quarto? O enodar-se e desenodar-se dos laços humanos, poderemos, então, dizer: não há 3 sem 4?
Diego Mautino Roma, 25 de julho de 2015
Tradução: Cícero Oliveira e Dominique Fingermann
[1] Proposta de título em português, como surgiu em Paris, julho de 2014.
[2] Colette Soler, Apresentação do Tema do IX Encontro da IF-EPFCL, 22 de dezembro de 2014.
[3] LACAN, J. (1973). “Televisão” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 530. A maldição do inconsciente é o impossível da relação, e, em duas palavras mal-dição evoca também o dizer-mau; além do mais, em francês malédiction y mâlediction com o acento circunflexo sobre o “a”, mâle, significa macho, e lembra o que Freud indicava como uma libido única, de natureza masculina.
[4] Lacan, J. (1973). “Televisão” In: Outros escritos, op. cit., p. 525. “Nisso tudo, onde está o que traz felicidade, feliz acaso? Exatamente em toda parte. O sujeito é feliz. Esta é até sua definição, já que ele só pode dever tudo ao acaso, à fortuna, em outras palavras, e que todo acaso lhe é bom para aquilo que o sustenta, ou seja, para que ele se repita”. “Felicidade” é a tradução do termo francês bonheur. Ao escrevê-lo bon heur, Lacan enfatiza a vertente de boa fortuna, de sorte presente no termo heur, também homófono de heure (hora) e heurt (topada).
[5] LACAN, J. (1973). “Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 553.
[6]LACAN J. (1976). “La Tercera”, Discurso de Roma 31/10/74 In: Intervenciones y textos 2, Manantial, Buenos Aires, 1988, p. 87.
[7] LACAN, J. (1970). “Radiofonia” In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 446. “É somente ao acuar o impossível em seu último reduto que a impotência adquire o poder de fazer o paciente transforma-se em agente”.
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