Proletários do mundo
Dominique Fingermann
“Proletários do mundo, uni-vos”, desejava um certo discurso, num tempo antigo, que de fato foi o nosso, e do qual Lacan dizia: “eles querem um maître [mestre]” (m’être).
Os proletários de nosso tempo desencantaram e não entoam mais em coro o poema de Paul Fort: “Se todos os homens do mundo quisessem se dar as mãos…”.[1]
Eles correm para cá e para lá, se cruzam, se ultrapassam, giram uns ao redor dos outros, dão três voltinhas e depois vão embora. Isso lembra a surpreendente peça silenciosa de Peter Handke, “A hora em que não sabíamos nada um do outro”,[2] no decorrer da qual, sem dizer uma palavra sequer, durante menos de uma hora de idas e vindas, mais de 300 “indivíduos” atravessam um praça, perambulam, acotovelam-se, tropeçam uns nos outros, se cruzam e cruzam de novo, sem nunca se encontrar.
Poderíamos clamar: “Esses contemporâneos são uns loucos!”, mais eis que também todos nós estamos bem enredados nesse turbilhão, os canalhas, os débeis e os “bem-pensantes”, e até mesmo aqueles que, advertidos da “não relação”, sustentam ainda assim seus pequenos mais-de-gozar up to date para cuidar de seus negócios próprios.
Mais visível na cena contemporânea do que na peça de Handke, cada um bolina seus pequenos objetos, crente de que eles estão “no bolso”, sem se dar conta de que este está furado como um tonel das Danaides, posto que, esmagados pelo caça-níquel do mercado, eles sempre são datados. E, portanto, embora o Discurso Capitalista não faça laço, nem por isso está fora-discurso, como a psicose.
Mas… a psicanálise.
A psicanálise, se ela ainda não tem primazia sobre o mercado, não baixou os braços, no entanto, pelo menos nesse outro campo, o campo lacaniano, pelo fato de que Lacan o nomeou, desde a ética da psicanálise, como aquele que não ignora o gozo.
Então, a psicanálise persiste e assina, a despeito daqueles que cantam desde sempre sua derrota, e propõe um parceiro ímpar que tem a chance de responder àquilo que, por estrutura, não faz laço.
Sim, a psicanálise está de prontidão para certos proletários, que não estão menos sujeitos à angústia sem remédio, e que, graças a certas circunstâncias e contingências, encontram um psicanalista.
O que se passa, então?
Laços e desenlaces na clínica analítica? Elementar, meu caro! Freud explicou bem isso: Eros e Tânatos!
Eros, do Princípio de Prazer ao desejo e ao amor de transferência, engana a morte.
Tânatos fica sempre atravessado pelos caminhos e pelos amanhãs que cantam.
Os proletários do Discurso do Capitalista que, por coragem ou por desespero de causa, topam o risco de chegar até a psicanálise, não se contentam com essa simples bipolaridade, que a ciência, inclusive, promete curar muito bem.
Pois, de fato, a questão do que faz laço e desenlace na clínica psicanalítica convoca nossa interrogação, e é bem menos simples do que parece à primeira vista. Por isso ela merecerá toda nossa atenção na ocasião do Encontro Internacional da IF-EPFCL de julho de 2016, em Medellin. Nós teremos seguramente a oportunidade de nos ouvir desdobrar as particularidades dos laços (de fala, demanda, desejo) que a experiência de uma análise trata bem singularmente, as suas relações com os desenlaces salutares que ela permite, assim como os novos enodamentos que ela pode eventualmente proporcionar.
A ética da psicanálise, que dirige e orienta a clínica que dela procede, esbarra contra os efeitos do discurso contemporâneo, porém barra o mal -estar específico dessa civilização quando sustenta a subversão do sujeito barrado e eleva sua causa à dignidade de semblante, agente de um novo discurso, na medida em que ele preserva “o efeito revolucionário” do sintoma.[3]
Desde os primeiros ditos das entrevistas preliminares, que declinam rateios, devastações, solidões, tédios e outros declínios do sentido da vida, denota-se esse ponto de singularidade fora de série, um ponto de emergência de um Dizer qui ex-siste, algo que se excetua dos ditos, embora os fomente. É nesse ponto de desenlace radical, que se destaca como um ponto de urgência, que responde “de analista”. Algo como uma função “analista”, um silêncio, uma presença que o conjunto vazio [ø] poderia escrever, engaja esse estranho diálogo. Aqui, portanto, nesses pontos de emergência e urgência, os sintomas de suas vidas ordinárias, tornam-se analisáveis pela graça do laço da transferência, e se constituem como sintomas analíticos.
“A intervenção sobre a transferência” poderá, então, produzir a báscula do sintoma do pior ao dizer (du pire au dire). Essa intervenção funciona fundamentalmente como “dizer que não”[4] que atualiza ao mesmo tempo o “não há relação” e o “Há Um” (Ya d’l’Un) e acaba por desatar o que Soler[5] chama de “falso laço” da transferência.
“Um analista verdadeiro não pretenderia outra coisa senão fazer esse dizer ocupar o lugar do real, até se provar outro melhor.”[6] É assim que, por chance, o Dizer da interpretação pode fazer “laço” com o Um-Dizer analisante. É pela via desse estranho diálogo que no final das voltas e reviravoltas dos ditos (des tours dits), o sintoma como nó pode se reconhecer e se fazer conhecer como “impudência do dizer”.
“(…) a partir do dizer ‘há Um’, eu ia aos termos que seu uso demonstra, para deles fazer psicanálise”[7] dizia Lacan. Esperamos mesmo para nosso mundo que, por muito tempo ainda, possamos fazer bom uso disso no transcorrer dos laços por vir.
Dominique Fingermann 6 Julho 2015
[1] Paul Fort cantado pelos Compagnons de la Chanson, em 1957. Cf. link https://www.youtube.com/watch?v=wGwHnFUDmww.
[2] Peter Handke (1992). L’Heure où nous ne savions rien l’un de l’autre. Paris : L’Arche, 1992.
[3] Jacques Lacan (1969). “Relatório do Seminário XV – O ato analítico” In: Outros escritos, op. cit., p. 378
[4] Jacques Lacan (1972). “O aturdito” In : Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 453.
[5] Colette Soler (2012). Qu’est ce qui fait lien?. Paris : Éditions du Champ Lacanien, 2012.
[6] Jacques Lacan (1972). “O aturdito”, op. cit., p. 477.
[7] Jacques Lacan (1972). “Relatório do seminário ...ou pior (1971-1972) » In: Outros escritos, op. cit., p. 546.
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