sábado, 23 de junho de 2012

VII Encontro IF-EPFCL - Prelúdio 9



VII Encontro da IF-EPFCL
O QUE RESPONDE O PSICANALISTA? ÉTICA E CLÍNICA
6 – 8 Julho de 2012

Prelúdio 9: RESPONDER PELOS CASOS DE URGÊNCIA

Michel BOUSSEYROUX

Responder é bem mais do que dizer alguma coisa a alguém, é comprometer-se a dar retorno, a favorecer, prometer, responsabilizar-se, como o indica a expressão: responder por si só. Para-além da resposta do analista, quer ela se dê por meio de palavras ou pelo corte, há aquilo pelo qual o analista tem de responder.
No discurso do analista, por se tratar de urgência, o analista tem mais ainda o dever de responder, a satisfação que marca o fim da análise é a urgência que a ela preside, segundo o dizer de Lacan em seu “Prefácio à edição inglesa do Seminário XI”, que propõe interrogar “como pode alguém se dedicar a satisfazer esses casos de urgência”[1], muito embora esses casos, ele confessa, justamente o atrapalhavam enquanto ele escrevia o prefácio. Mas era simultaneamente “para ficar a par desses casos, [para] fazer com eles par”[2] (idem) que ele estava escrevendo, que acreditava ter o dever de escrever.
 Lacan faz da escrita desse prefácio um dever a ser cumprido. O dever ético de responder, por meio da escrita, pelos casos de urgência, dos quais, como analista, ele é parceiro no discurso analítico, e também para ficar a par, para estar à altura desses casos. Contudo, para estar à altura desses casos de urgência, que não se tem certeza de satisfazer, convém ter pesado corretamente a urgência.
O termo “pesagem” conota em Lacan uma análise lógica das relações do indivíduo com a coleção e remete ao problema, tratado por ele desde 1945 em “O número treze e a forma lógica da suspeita”, do menor número de pesagens necessário para detectar, exclusivamente por uma balança de dois pratos, uma peça ruim que se distingue das outras peças da coleção por uma diferença de peso imperceptível sem um aparelho de medição e cuja aparência é igual. Este número corresponde a três pesagens, se a peça ruim se encontra no meio de 12 ou até de 13 peças, mas será preciso fazer quatro pesagens, se houver entre 14 e 40 peças, cinco pesagens, se houver entre 41 e 121, seis, se houver entre 122 e 364, etc... Lacan mostra que, para resolver este problema, é preciso colocar em jogo, nas operações de pesagem, o que ele chama de por-três-e-um e uma rotação tripartite, noções que fazem eco ao Lacan borromeano do Prefácio de 1976: na balança de dois pratos da verdade e do real, não há possibilidade alguma de pesar a urgência que está no pedido de entrada e que deve ser satisfeita no fim, sem que se tenha introduzido na operação analítica a posição do por-três-e-um, que é uma maneira excelente de qualificar a posição do sintoma, como o quarto aro  no nó borromeano que orienta a análise em direção ao real.
Lacan diz que aprendeu com seu ofício a urgência de servir os outros {não aos outros, mas osoutros}. “Aí está um aspecto singular”, escreve-o neste Prefácio, “do amor ao próximo salientado pela tradição judaica.”[3] Esta tradição judaica é a que aparece em uma passagem do Levítico. No século primeiro ela se tornou a lei de ouro da Torah e é ela que retoma o evangelho de Lucas, quando formula o preceito do amor ao próximo e o explica com a parábola do bom Samaritano. Lacan o comenta da seguinte maneira: “Mesmo interpretando-o de maneira cristã, ou seja, como um c...gar e andar [jean-fo... trerie][4] helênico, o que se apresenta ao analista é algo diferente do próximo: é a indiscriminação de uma demanda que nada tem a ver com o encontro ( com uma pessoa de Samaria, apropriada para ditar o dever crístico).” Esta parábola é uma interpretação de Jesus acerca do que significa a lei de ouro: Aquele que responde, que se confronta à urgência, não é o Judeu piedoso, é seu inimigo íntimo e ímpio, o Samaritano, odiado profanador do Templo de Jerusalém. O próximo da parábola não é o passante que, atacado pelos soldados, cai ao chão e clama por socorro, é o Samaritano, o outro do Judeu,  aquele que, como pôde dizê-lo Ivan Illich, é o Palestino de Gaza dos dias de hoje,  capaz de cuidar de um Judeu ferido. Ele só se dedica a satisfazer os casos de urgência, porque, assim como o Samaritano e ao contrário de Sade e de Freud, está suficientemente perto de sua maldade para nela reencontrar seu próximo.
 Compreende-se, então, porque Lacan fala do bom Samaritano para diferenciá-lo da singularidade da dedicação do analista em satisfazer os casos de urgência. Laca não se dedica ao amor ao próximo, por mais estrangeiro que este possa ser a nosso semelhante. Seria, antes, à porrinha {la mourre}[5]do real, jogo que ainda vigora em algumas regiões da Itália ou do país niçois onde o número veicula o real, que, sozinho, alcança o peso necessário para ganhar a aposta do inconsciente. O jogo do real, na medida em que ele não é de modo algum o nosso próximo, é uma razão outra – diferente daquela do amor à verdade atrás da qual corre a transferência – razão que pode apenas impelir o analista a se historisterizar de si mesmo[6].
O que se apresenta ao analista não é o próximo, é outra coisa. É a indiscriminação de uma demanda que nada tem a ver com o encontro com um Samaritano, mas tem a ver com a repetição, ou melhor, com aquilo que, na repetição, é ré-petição, requerimento. De modo que o que se apresenta ao analista tem a ver com aquilo que “demanda o novo”[7] , pois é o encontro faltoso com o real que, em suas sucessivas voltas, o transfinito da demanda não cessa de repetir. Então, é justamente à urgência da demanda, ao requerimento que se reproduz na repetição, que o analista deve dar a satisfação que marca o fim da análise.
Mas como satisfazer esses casos de urgência da demanda? Pelo corte da interpretação, o único capaz de produzir o dizer da demanda a partir do que se reproduz na transferência, dizer que se experimenta no passe com seu efeito de perda. Não há satisfação da urgência sem que se  produza o que Lacan chama em seu resumo do Seminário ou pior... “Um-dizer, por se saber Um-todo-só”[8], sozinho a testemunhar a existência do real. É a esta existência do real que o analista tem o dever de responder.
O discurso do analista é um discurso de urgência em que é o dizer  que socorre. É na medida em que faz corte, e em que seu corte faz passe, em que o dizer socorre, que ele pode socorrer à urgência, culpada que ela é pela indiscriminação de uma demanda.
Toulouse, 23 de fevereiro de 2012.
Tradução: Vera Pollo


[1] LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.569.
[2] Idem, ibid.
[3] Lacan, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro, J.Zahar, p.569.
[4] Jogo de escrita produzido por Lacan, que evoca a primazia da dimensão do sexual [foutre, foutrerie] em detrimento da insignificância [foutaise, fouterie]. Cf. nota de rodapé em Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 315.
[5] Bras.  Jogo em que os parceiro encerram na mão certo número (entre 0 e 3) de moedas ou palitos de fósforo, para depois, um a um, tentarem adivinhar o total. Cf. Novo dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira S. A. , s/d, p.1118.
[6] Outros Escritos, p.568.
[7] O Seminário, livro 11. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1979, p.62.
[8] Outros Escritos, p.548.

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