VII Encontro da IF-EPFCL
O QUE RESPONDE O PSICANALISTA? ÉTICA E CLÍNICA
6 – 8 Julho de 2012
Prelúdio 10: A RESPONSABILIDADE DO DIZER
Minha prova só toca no ser ao fazê-lo nascer da falha que o ente produz ao se dizer.
J. Lacan – Radiofonia
Nos dias de hoje, é ainda possível que a dor de existir “se dê um parceiro que tenha chance de responder”[1] A resposta do analista, como a própria palavra indica, é sua responsabilidade, ela se qualifica como responsabilidade do Dizer. Resposta, responsabilidade, do latim: spondeo – spondere = prometer.Re-spondere = prometer, re: “em retorno”. Responder é responder a um outro dizer, é um dizer à altura do Outro; o Dizer toma a medida da alteridade e daí sua unicidade (uniqueness) toma posição.
A dimensão radicalmente ética da resposta de analista é, desde o princípio, anunciada.
Pelo que responde o analista? O que é um psicanalista que responde pela psicanálise? É analista quem responde pelo seu ato. Ele é quem assegura, em réplica à demanda, seus ditos, desditos e reditos, que seja levada em conta o aturdito[2] que torna a demanda singular e, por isso, condiciona o passe ao ato, passagem ao Dizer.
O analista é aquele que, em réplica ao mal estar que tem a coragem de se fazer demanda de saber, toma posição e assume a responsabilidade do Dizer; posição do analista, posição do inconsciente, em-corpo [en-corps], ele se faz pivô da redução do Dito ao Dizer.
Fazemos aí, evidentemente, um empréstimo a Emmanuel Lévinas[3], e isso zelando para não reduzir os conceitos do ensino de Lacan que nos orientam na experiência clínica aos conceitos da filosofia. Sem querer abusar de ou maltratar essa referência, lembremos sucintamente o campo conceitual que nos interessa, na medida em que ele pode nos permitir discernir a responsabilidade clínica do analista, ou seja, sua resposta, o dizer que funda seu ato, o Bem-Dizer, ou seja, a ética que o garante.
A responsabilidade é uma responsabilidade por Outrem, “resposta respondendo a uma provocação”[4] da alteridade: traumatismo. Ela é “o lugar onde se instala o não lugar da subjetividade”, onde se sinaliza “num lapso um tempo sem retorno”[5], “outro modo que ser, para além da essência” [l’Autrement qu’être, au delà de l’essence]; responder é Dizer a partir de nenhuma essência prévia.
A responsabilidade por Outrem é “responsabilidade entre seres separados que ela clama”[6]; an-árquica, ela é Dizer de origem, pré-original, “de antes da linguagem”. Ela é marca da origem ética e não ontolôgica, a essência só podendo aí fazer sequência no Dito (nem mais, nem menos).
“Ponto de ruptura, mas também de enodamento”[7], pois a separação “é a conversão em responsabilidade” da “positividade do infinito”.
O Dizer e o Dito.
O Dizer é exposição a Outrem, responder por outrem é “uma forma de ser afetado”[8] e, daí, é incluir a alteridade radical (alienação e separação); o traumatismo provoca o Dizer: “a alteridade do próximo daí invoca, evoca, à singularidade insubstituível que está em mim”[9], princípio de “relação entre termos desparelhados, sem tempo comum”[10].
A resposta ética do Dizer prossegue no Dito. “O dizer que tende para o Dito mantém essa tensão do Outro, de Outrem, que me arranca a fala antes de aparecer para mim”[11].
O Dito correlacionado ao Dizer é “mostração”, ele mostra, manifesta, ele é sentido, verdade, fábula ou escrito que representam, tematizam e cuja traição permite um acesso ao ser. “Nesse Dito surpreendemos o eco do Dizer, cuja significação não é de juntamento”[12].
“O Dizer descobre o um que fala”[13], um “Desnudamento até o um inqualificável, até o puro alguém, único...”[14]. Por um lado, fabulação da verdade do Dito, por outro, “impudor” do Dizer.
Lacan, por sua vez, isola essa função do Dizer nos anos 1970, logo em seguida à sua elaboração dos Discursos, substantivando o Dizer como Atoprinceps.
Ele começa localizando o que chama de Dizer de Freud, que ele infere a partir de todos os seus Ditos, tanto quanto de todos os ditos da psicanálise. O que se ouve também como: de todos os ditos de uma psicanálise se deduz o Dizer de Freud “não há relação sexual”.
Mas isso não é dizer tudo [pas-tout dire].
Lacan dá sequência a esse Dizer “não há...” colocando o que ele nomeia “meu dizer” que enunciará o “Um Dizer”. O Dizer de Lacan é o Real como Ex-sistência, ou seja, o nó borromeano em que se encontra que para fazer Um, é preciso três. Ele deduzirá daí o Sinthoma como maneira singular de responder ao “não há...” graças ao “Há Um” [Y a d’l’Un], um a mais que enoda os três.
Nessas duas ocorrências do Dizer (o Dizer de Freud e o Dizer de Lacan) encontramos dois momentos de Dizer que fabricam o sujeito como resposta do Real “Não há”, “Há...”, dois momentos que “Posição do Inconsciente”[15]anunciava com a dupla causação do sujeito da alineação e separação.
Na clínica da demanda, na transferência dos Ditos da queixa e de seus enunciados, há Um que ressoa, “Há Um” [Y a d’l’Un] de um saber que excede à verdade.
A responsabilidade de Dizer do analista é responder por esse Um sem qualidade, mas não sem estilo. A responsabilidade de Dizer do analista é sua resposta à demanda de verdade desde uma posição que leva em conta o Real fora de sentido, isto é, “a resposta que convém ao estilo do inconsciente”[16].
“Tratar-se-ia”, adverte Soler em 2008, “de atualizar nossa concepção do ato e da interpretação de uma análise orientada para o Real fora de sentido, embora esta só proceda da fala. A aposta é de peso, pois esse real é o único suscetível de fazer limite às errâncias intermináveis da verdade”[17].
O ato e a interpretação: é possível distingui-los nitidamente, se tanto um quanto o outro devem responder pelo Dizer que existe aos Ditos, do Dizer impossível e ex-sistente que indica singularmente o lugar do Real?
Fazendo intrusão no curso da fala de forma tal que se atualiza aí ao mesmo tempo a ruptura e o laço, o “Dizer que Não” do ato e da interpretação rompe o semblante da verdade fazendo uma volta a mais, um novo laço com o Real do qual ele sinaliza o furo: o Dizer faz corte e faz nó.
Que ele se cale ou que fale, enigma ou equívoco do sentido, é com seus cortes no Dito que o analista sinaliza, ou antes, captura em seu lapso o Dizer que atravessa aquele de cabo a rabo. Como o lapsus, quando não faz mais sentido, o analista, ou seja, seu ato faz ex-sistir o Dizer.
Que ele fale ou se cale, é a posição, a presença, enigma ou equívoco, que opera fazendo objeção ao sentido. O analista em-corpo [en-corps] “interpreta” prestando-se ao jogo do ato como um ator. Fazer o analista é fazer o objeto que objeta ao bom sentido da verdade. Fazer objeção é fazer abjeção “para representar esse efeito que designo como objeto pequeno a, para nós fazermos a esse desser de ser o suporte, o dejeto, a abjeção a que pode se fisgar o que vai, graças à nós, nascer de dizer, de dizer que seja interpretante, claro, com o auxílio daquilo que é ao que convido o analista, a se suportar, de forma a ser digno da transferência, a se suportar por esse saber... no lugar da verdade”[18].
A responsabilidade do Dizer do analista é que encarnando o “Dizer-que-não” ao “Dizer verdadeiro”, ele faz lugar para Um dizer: “O que vai, graças a nós, nascer de dizer”.
A ética da resposta do analista é “um dizer, um dizer que poderia ter consequências”[19], espera Lacan: consequências clínicas. Fazendo bascular uma letra nos ditos do analisante, pode acontecer que o Um bascule do Pior ao Dizer[20] [du Pire au Dire], e talvez o “Não há” da repetição e o “Há” do sintoma encontrem ali uma ressonância diferente daquela do fantasma, uma chance de Um Dizer [Un Dire] de outro modo. Se para o analista “há Dizer para ser demostrado”[21], para o analisante há a “impudência do Dizer”[22] poemático, em guisa de resposta ética e poética frente à lógica da cura: “responsabilidade sexual” frente ao “Não há relação...” do Héteros.
São Paulo, fevereiro de 2012.
[1] Referência ao texto L'Etourdit, O Aturdito, e a volta não contada nas voltas dos ditos que é a sua volta real.
[2] Referência ao texto L'Etourdit, O Aturdito.
[3] Agradeço à Françoise Gorog e Stéphane Habib por um primeiro acesso a Lévinas, graças à intervenção de Joseph Cohen no seminário dos Corrélats(janeiro de 2010).
[4] Emmanuel Lévinas (1978). Autrement qu'être ou au-delà de l'essence. Paris : Le Livre de Poche-Biblio Essais, 1996, p.26.
[5] Idem p.23.
[6] Idem p.24.
[7] Idem p.27.
[8] Idem p.159.
[9] Idem p.239.
[10] Idem p.114.
[11] Idem p.124.
[12] Idem p.48.
[13] Idem p.83.
[14] Idem p.85.
[15] Jacques Lacan. “Posição do inconsciente” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
[16] Jacques Lacan. “A Psicanálise e seu ensino” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.449.
[17] Colette Soler. 14 de out 2008
[18]Jacques Lacan (1971-1972). Le Séminaire Livre 19 – ...ou pire. Paris : Seuil, 2011, p.235, tradução minha.
[19]Jacques Lacan (1974-1975). Le Séminaire Livre 22 – R.S.I., inédit (Aula de 15/04/1975).
[20] Jacques Lacan (1971-1972). Le Séminaire Livre 19 – ...ou pire, op. cit., p.12.
[21] Jacques Lacan (1974-1975). Le Séminaire Livre 22 – R.S.I., inédit (Aula de 13/05/1975).
[22] Jacques Lacan ( 1973-1974). Le Séminaire Livre 21 – Les non dupes errent, inédit (Aula de 11/06/1974).
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