sábado, 20 de agosto de 2011

III Encontro Internacional da Escola - Prelúdio 1





Prelúdio por um a posteriori (1)

Frédérique Decoin

 

A qualificação do psicanalista e a garantia de sua formação foram vetores, como evoca Danièle Sylvestre (Mensuel n°61, p.74), junto com a experiência da análise, do percurso de Lacan. Estas questões foram o fundamento da nossa Escola e elas não deixam de ser postas, em particular, no trabalho de implementação do dispositivo do passe que tenta recolher o testemunho de um passante, através dos passadores e um cartel, o traço de um ato que teria feito passar, esse passante, de analisante a analista. É unicamente, ou em todo caso mais rigorosamente, a partir deste ato e do testemunho que é a consequência, que pode funcionar uma garantia que não seja motivada pela pregnância narcísica e pela astúcia competitiva .
O ato a partir do qual pode operar essa garantia é correlacionado por Lacan ao início e ao fim da análise:

“Nossos pontos de junção, onde tem que operar nossos órgãos de garantia, são conhecidos: são o começo e o fim da psicanálise, como no xadrez. Por sorte, são eles os mais exemplares por sua estrutura...” (Lacan, Proposição de 9 de outubro de 1967, p.252, Outros escritos)

No início da análise é preciso um ato do analista para fazer passar o paciente, que então se torna analisante, ao discurso da histérica, e ao fim é preciso um ato do analisante para passar a analista. Mas qual fim se encontra colapsado a esse ato? Mais exatamente, o que é que se encontra concluído na precipitação do ato?
É certo que este ato marca o fim de algo, ele marca o fim da análise por isso? É ao "tempo lógico" (O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada, in Escritos) e à noção de "a posteriori", que Lacan faz referência ao tentar circunscrever o tempo do ato.

“A psicanálise em intensão, ou seja, a didática... Esquece-se, com efeito, sua pregnante razão de ser, que é constituir a psicanálise como uma experiência original, levá-la ao ponto em que figura a finitude, para permitir o a posteriori (...) essa experiência é essencial para isolá-la da terapêutica...” (Lacan, Proposição de 9 de outubro de 1967, p. 251, Outros escritos)

O que diz Lacan aqui nos esclarece sobre o fato de o fim correlacionado ao ato ser um fim que “permite o a posteriori’’ . Essa noção do a posteriori “próprio ao tempo lógico”, Lacan, ao fazer a releitura de Freud, fez dela uma noção essencial e ela aparece indissociável de sua reflexão sobre o ato analítico. Na “Proposição de 09 de outubro de 1967” ele abre sua reflexão sobre o ato freudiano a partir do artigo de Octave Mannoni, “L'analyse originelle”, e contradiz a idéia de que a writing-cure (Correspondência com Fliess entre 1887 e 1902) tenha se constituído como a análise original de Freud. Segundo ele, a verdadeira análise original foi a
“segunda”:

“Por constituir a repetição que da primeira faz um ato, pois é ela que introduz o a posteriori próprio do tempo lógico, que se marca pelo fato de que o psicanalisante passou à psicanalista”. (Lacan, Proposição de 9 de outubro de 1967, p. 258, Outros escritos ).

Segundo Michel Bousseyroux (L’appensée de Freud, in Mensuel n°3, 2004), a segunda e original análise de Freud se deu no tempo em que ele pensou a paranoia. Não foi o caso Schreber que teria aberto a ele o caminho conceitual, mas sim a consciência da paranoia de Fliess após a ruptura. Freud elabora a posteriori sua relação tranferencial com Fliess, e se distancia, quando começa a fazer uma série de sonhos "hipócritas", sonhos de reconciliação com seu “amigo deixado por um longo tempo.”

“Na quarta ou quinta vez, eu finalmente consegui entender o significado deste sonho. Ele (o sonho) me encorajou a deixar lá o que ficou em mim de consideração pela persona em questão, e me livrar dela completamente, o que ele tinha hipocritamente disfarçado como seu oposto”. (ver A interpretação dos sonhos)

A interpretação desses sonhos “depende da lógica do ato” (Bousseyroux, 2004) e vem concluir essa segunda análise. Freud se apressa em concluir que esse sonho não é um sonho de reconciliação, ele se apressa em concluir o tempo para compreender.

“Passado o tempo de compreender o momento para concluir, é o momento para concluir o tempo de compreender” (Lacan, O tempo lógico..., p.206, Escritos)

É na estrutura do a posteriori e da repetição que pode efetuar-se o momento de concluir. Assim, não foi somente porque Freud elabora a posteriori sua transferência com Fliess, mas também porque o sonho é pura repetição que Freud pode ser tomado pelo ato. Os conteúdos do sonho eram tão manifestadamente a repetição da transferência anterior com Fliess, transferência que tinha sido elucidada a posteriori, que Freud nada mais tinha a entender. Tudo que lhe restou a fazer com este sonho foi julgar. Ao julgar seu sonho, Freud faz um ato "o pensamento moderno tem mostrado que todo julgamento é essencialmente ato" (Lacan, O tempo lógico..., p.208, Escritos)
De certo modo, Freud, ao compreender que desse sonho nada há para compreender, responde. Além disso os verbos são de ação: ele "deixa lá" o resto de consideração, ele "se liberta"... Este julgamento que é um ato, nós o vemos, produziu seus efeitos, e aqui, neste caso particular, efeito de liberdade.

“Poder surgir das liberdades do fechamento de uma experiência, é isso que decorre da natureza do a posteriori na significância”. (Lacan, Proposição de 9 de outubro…, p. 261, Outros escritos)

O ato é produzido assim na estrutura do a posteriori e da repetição, e “no ponto de finitude” que ele representa, ele permite isso também. O a posteriori do ato, podemos dizer, o momento de concluir, seria então, talvez, a continuação lógica e verdadeira. Se o “fim da partida” não oferece um a posteriori podemos pensar que a continuação é então o tempo para compreender...
____________________________________

1 Nachträglichkeit é a palavra usada por Freud para conceber a temporalidade psíquica, e que pode ser traduzida pela expressão latina a posteriori ou pela expressão só-depois, como preferiu M.D. Magno (Nota do tradutor).

Tradução de Rosane Melo

Nenhum comentário: