sábado, 10 de setembro de 2011

III Encontro Internacional da Escola - Prelúdio 3

Um empréstimo

Carmelo Sierra López

Ao tentar falar de minha experiência como passador no dispositivo do passe, me encontro com a necessidade de ter de transcender o particular de cada caso e buscar, caso possível, algum denominador comum com o qual possa me referir como elemento de base da experiência tratada como um todo.

Estar como sujeito nesse momento de passe clinico, segundo está escrito, é o que permite ao analista propor seu analisante como passador de outro sujeito que está decidido a dar conta de sua experiência de mudança, da qual se produziu como efeito um desejo inédito que é o desejo de analisa.

Minha pergunta, desde o principio, foi porque um sujeito em trânsito de seu passe clínico estaria mais capacitado para a transmissão desse testemunho que outro, possivelmente melhor dotado e mais armado de conhecimentos sobre a doutrina e o saber referencial.

No momento em que, como analisante me encontrava, o 'haver sido proposto como passador' foi, para mim, uma clara interpretação surpresa que me transladou como sujeito a outro espaço diferente daquele do qual tinha consciência.

Ali onde me nomearam, um lugar do qual eu parecia querer me ocultar, me convocava a uma função alheia à programação que tinha de mim mesmo. Tudo transcorreu, com a primeira chamada, muito rápido. Se entre o instante de ver e o momento de concluir tudo se resolveu sem tempo de compreender, quem concluiu por mim? Foi um ato. Uma resposta em ato que tinha toda a lógica depreendida ao longo dos anos de análise ao decidir aceitar passar pela experiência. Isso funcionava apesar do escorrego que eu quisera estar, pensei, e me alegrei dessa constatação empírica. Tomei confiança na impressionalidade (?) de um conhecimento sensível que não se deixava intimidar pela dura barreira do telão fantasmático.

Pensei que, se desde os textos fundadores e depois, do tempo transcorrido de outras experiências, se insistia em pôr o acento nesse momento estrutural do tratamento do passador, era porque o testemunho não haveria de ser lido a partir da doutrina, mas, se trataria, definitivamente, de uma escuta do percurso, comportamento e avatares do sujeito passante, quer dizer, daquilo que de alguma maneira deixa sensível mais além do conhecimento. Algo que afeta se se está nesse ponto: pouco vestido de significações fantasmáticas e mais aberto ao emergente fora de sentido. Essa condição, permitiria essa sensibilização à percussão do real que não se deixa apreender no simbólico.

Em cada caso que escutei, um elemento que me apareceu e entrou como fundamental em minha consideração, que despertou e contribuiu, sem dúvida, ao afinamento e atenção na escuta, foi a vividez e convicção manifesta no passante. Vividez e convicção não no formal do relato, porém na decisão com a qual se apresentava e apostava pela experiência de testemunhar.

A historicização da experiência analítica, a lógica e pontos de articulação significante, os momentos de passe e melhora clinica, dali onde havia sido seu sintoma, e inclusive chegar a dar conta de certas experiências de abandono fantasmático, tudo isso foi sem duvida muito mais do que conveniente, se sabe e esta dito, mas o que me interessou e suscitou minha atenção, desde o principio, era essa impressão que tinha de que algo mais passava, atravessando toda essa urdidura significante. Perguntei-me o que era e como se poderia perceber o real que havia em jogo na experiência quando por definição não se sabe formalmente.

A primeira escuta dos relatos demonstrou ser o mais interessante, porque vai se despregando o corpo vivido ou cadavérico do texto que deve falar. A voz do dizer que atravessa a composição formal, inclusive a harmonia que se deixa perceber, é a expressão do que não é apreensível no dito, mas sem ser alheio a ele, quer dizer, tem conexão com o significante, mas não se esgota no sentido significado. É a expressão do não-todo, como poderia ser, ocorre-me, a beleza, para quem a percebe como produto afetivo da obra de arte que a suscita. Algo vinculado a ela, mas depreendido da mesma.

Com a singularidade de cada testemunho, fiz um prognóstico para mim, que nem sempre coincidiu com a decisão que tomou o cartel, e isso não me pareceu estranho nem chamativo, mas me empuxou a repassar os recorridos do processo, a consistência e o sentido do relato e pude verificar que entre o escutado e o anotado, e o que desprendeu do cartel do passe, há vários desajustes, esquecimentos, erros, inclusive lapsos, que me pareceu que não era possível obviar a presença do trabalho do real em jogo. Eram emergências ou acenos de vazio, que formavam parte estrutural do relato e que chamavam a certa mobilização do percurso significante intimamente vinculado a ele. Fenômenos da falha singular que anima cada caso. Essa falta que lhe outorga a descompletude e que permite versões sempre fragmentadas, abre também o campo a uma verdade mutilada que o sujeito só pode reconhecer lendo-a no que se desprendeu de seus ditos.

Desde esse ponto que se escapa, em certa medida, ao matema significante, coloquei essa reflexão sobre minha experiência de passador, e se faço hincapie nestes elementos de difícil formalização é porque considero que o que passa e permite localizar nele o testemunho passador - e permite localizar no testemunho o inédito de desejo do analista - tem certa conexão com a expressão artística, em sua capacidade de conectar com o real.

Não por isso pretendo falar de experiências inefáveis. Insisto em que se não se da um testemunho transmissível desde a lógica formal da doxa, a vividez que deve animá-lo corre o grave risco de desfazer-se em relatos cadavéricos, nos quais a verdade aparece com a marcada aparência de mentirosa.

Considero, também, ao fio do desenrolado, que ademais de ter essa posição subjetiva, de estar ai em seu percurso analítico, o passador deve estar movido pela curiosidade e certo desejo de “experiência”. Não todo sujeito em análise sente essa curiosidade em constatar e experimentar a consistência da teoria e a eficácia dos dispositivos da transmissão.

Parece-me que a possibilidade de portar isso, que do real se impregnou na sensibilidade do passador e que deve depositar nos membros do cartel, está, em grande medida, marcada por essa curiosidade que, ao final, civilizada, não é outra coisa senão o desejo de saber.

Toda essa experiência resultou muito estimulante e teve claros efeitos benéficos em relação a minha análise, senão e, sobretudo, em minha orientação ao trabalho com os colegas nos grupo e instituições.

A partir desta participação no dispositivo, se foi instalando progressivamente o que seria uma transferência de trabalho ao sentir-me concernido por uma causa para a qual tenho trabalhado dois anos, sem atrever-me a assumir o risco de divisão que ela implica.

Esta convicção e perspectiva do trabalho analítico articula-me com meus pares e outorga-me um lugar que faz série com os outros.

Albacete 2 de junho 2011

Tradução de Alba Abreu e Andrea Brunetto

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