segunda-feira, 19 de setembro de 2011

XII Encontro Nacional da EPFCL-Brasil - Prelúdio 5



Os limites da interpretabilidade

Sonia Alberti
No item c) “A significação oculta do sonho”1 de uma pequena sequência de textos sobre o sonho, Freud cita um exemplo do fato de que, na interpretação do sonho, temos acesso não somente ao conteúdo recalcado inesperado, mas também “entreouvimos  o pensamento pré-consciente nos estados em que verifica sua própria situação interna e que não foram conscientizados durante o dia”2: a simbolização. Observa que a simbolização não é, de forma alguma, uma questão onírica, mas um tema do pensamento arcaico, de nossa “língua fundamental”, como o expressara acertadamente o paranóico Schreber [sic]. Ele acrescenta que o sonho não tem a exclusividade de ocultar de forma privilegiada conteúdos significativamente sexuais, estes também são ocultados nos mitos e nos rituais religiosos, por exemplo. Em consequência, Lacan observa em seu Seminário 3 que “não há nada de comum entre o inconsciente e o oculto”.
No item a) dessa mesma sequência de textos, “Os limites da interpretabilidade”, Freud depreende “que o sonho é uma entidade psíquica interpretável de maneira geral, mas nem sempre a situação permite a interpretação”4 e que às vezes não dá para verificar se a interpretação inclui ou não pensamentos pré-conscientes que podem ter se expressado pelo mesmo sonho. Então, o sentido demonstrado, corroborado, é aquele sustentado pelas associações do sonhador e da avaliação da situação; o que não implica que outro sentido deva ser sempre descartado. Ele continua possível, apesar de não demonstrado (unerwiesen); é preciso familiarizar-se com o fato de tal pluralidade (Vieldeutlichkeit) na interpretação dos sonhos. A pluralidade nem sempre deve ser tomada como responsável pela incompletude do trabalho da interpretação, pois essa responsabilidade pode advir igualmente dos próprios pensamentos oníricos latentes – ou seja, inconscientes. Quanto ao fato de ficarmos inseguros sobre se uma expressão que escutamos, uma informação que recebemos, deve ter esta ou aquela interpretação (Auslegung), sobre a possibilidade de, além de seu sentido evidente, ainda se indicar (andeuten) alguma outra coisa, isso também vivemos em vigília e, portanto, externamente à situação da interpretação do sonho.
Não é a primeira vez que Freud se utiliza do termo Auslegung para a interpretação, normalmente expressada pela palavra Deutung. Já na “Interpretação dos sonhos” se valera, algumas vezes, desse artifício. Em quê ele nos serve senão a pluralizar a interpretação?
Se é verdade, como Freud estabelece em 1925, que a análise de um sonho, orientada a partir das associações do sujeito em análise, pode privilegiar os pensamentos pré-conscientes que não foram conscientizados durante o dia, e se é verdade que a incompletude do trabalho da interpretação pode advir igualmente dos próprios pensamentos oníricos latentes – ou seja, inconscientes, então esse texto de Freud já leva em conta um inconsciente que não sabe – cuja falta de representabilidade é substituída, no material onírico, pelos pensamentos pré-conscientes –, o que o aproxima de um inconsciente real. Este não visa senão “evitar a perturbação do sono” – o ganho de prazer, a Mehrlust(prazer a mais), o gozo. Eis onde, em Freud, já se pode identificar a disjunção entre inconsciente e interpretação, explicitada por Lacan em 1976: “Quando [...] o esp[aço] de um laps[o] já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente”5.
O sonho é operação de ciframento feita para o gozo, para que nesse ciframento se ganhe esta coisa que é essencial do processo primário, a saber, o ganho de prazer. Eis onde Freud faz matemática e onde ele é lacaniano. Lá onde o ciframento se basta, nada atrapalha a função do sonho: a de ser o guardião do sono. Se, inicialmente, o desejo é indestrutível, fundamentalmente porque ele é sempre o mesmo 6, e que é isso que resulta na estrutura – coisa que foi dada de cara pelo primeiro passo feito por Freud, o de ter-se dado conta de que há o Real no Simbólico –, quando nos instrumentalizamos do inconsciente, o que temos? Os limites do ciframento possível, porque o sentido é sempre sexual e o sonho se depara com a inexistência da relação sexual, ele não dá conta do recado... os limites da interpretabilidade são assinalados pela chegada do sentido que não dá conta do recado. Para concluí-lo, Lacan dá o segundo passo: sublinha que a palavra “limite”, aqui, é aquela que vale para a matemática, como em “limite de uma função, como limite de um número real” e que quer dizer, em matemática, “que independente do aumento da variável – ela pode aumentar o quanto quiser –, a função não passará de certos limites”7. Com efeito, limite, em matemática, é o valor para onde vai uma assíntota, e uma função é assintótica quando gradativamente vai dependendo menos de sua variável: o sentido, em nosso caso. O sentido – que é sexual – fracassa porque sempre fracassa aVerhältnis (relação sexual) enquanto escrita, razão que impede seu ciframento – por isso acordamos.
 

[1] FREUD, S. c) Die okkulte Bedeutung des Traumes [1925]. Einige Nachträge zum ganzen der Traumdeutung. Gesammelte Werke, Frankfurt a.M., Fischer Taschenbuch Verlag, v. I, p.569-575, 1999.
[2] Id., ibid., p.562.
[3] LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXILes non-dupes errent [lição de 20 de novembro de 1973]. Inédito.
[4] FREUD, S. a) Die Grenzen der Deutbarkeit [1925]. Einige Nachträge zum ganzen der Traumdeutung. Gesammelte Werke, Frankfurt a.M., Fischer Taschenbuch Verlag, vl. I.  p.561-564, 1999. p.564.
[5]LACAN, J. Préface à l'édition anglaise du Séminaire XI [17/05/1976]. In : ______.  Autres Écrits. Paris: Seuil, 2001. p. 571.
[6]    LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXI: Les non-dupes errent [Lição de 13 de novembro de 1973].
[7]    LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXI, op. cit., lição de 20 de novembro de 1973.

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