O QUE RESPONDE O PSICANALISTA? ÉTICA E CLÍNICA
6 – 9 Julho de 2012
Prelúdio 7:
Chamou minha atenção que só tão tardiamente (20/12/1977) Lacan tenha voltado a situar sua prática no impossível de dizer[1]. Isto me levou a perguntar: o que é dizer? Ele próprio responde: “dizer é diferente de falar”. E pareceu atribuir a ambos os parceiros de uma análise, de formas distintas, cada um desses atos. Disse, quase esquematicamente, assim: o analisando fala; o analista diz. Porém, neste mesmo momento, traduziu dizer por corte. E acrescentou que o dizer depende da fala e o corte da escrita, isto é, da ortografia. Em seguida, parecendo se corrigir, afirmou que tanto naquilo que diz o analisando quanto no que diz o analista, não há outra coisa senão escrita. Seu exemplo do dizer, nesta ocasião, foi: “il est art / il est tard”, o que com certeza exige que a intenção, ou seja, o sentido, dependa da ortografia. Eu mesmo recolhi um exemplo que creio ir nesta direção: - “Tá todo mundo com os olhos cheios d’água”, disse-me um analisando. – “De onde você tirou esta ideia?”, repliquei. -“Da música de Billie Holiday, Me, Myself and Eye/I”, respondeu. O analisando, ao falar, diz mais do que quer dizer, e o analista, ao ler esse mais, corta. Tudo isso os faz deslizarem no nó borromeano, quer dizer, no pensamento e até na extensão, isto é, no corpo.
Pesquisando o tema da interpretação ao longo deste último ano, retornei à edição em língua portuguesa do ensaio de Freud “A interpretação das afasias”. Dei de cara com a introdução que aqui evoco para precisar ainda mais o discernimento entre falar e dizer. O autor afirma que “a questão da afasia é em Freud bem mais subversiva que a descoberta nela, por parte de Jakobson, dos princípios da normalidade”[2]. Ele justifica de modo bem consistente que a palavra é ato, de tal maneira que não faz mais sentido discernir significante de ato. Diz que a estrutura da palavra é a do lapso, e que o sentido é o efeito que cai do ato de palavra. Ainda segundo ele, Freud designa de transposição (Entstellung) o fato de que o sentido não pode ser causa do significante, dando como exemplo o anagrama barre, que Lacan faz surgir da arbre saussuriana. Aí, o sentido não causa nada, tal como na afasia. O estudo do sintoma da afasia leva ao estudo do lapso, da piada, do sonho. Na fala, o erro testemunha a constituição afásica da palavra, e cada ato se constitui como falho. Não há ato fundamental. O dizer exorbita, não depende do sentido, mas da nomição.
Eu não entendia a diferença entre falar e dizer até ler o artigo “Freud e a enunciação”, de Todorov[3]. O autor demonstra que no artigo de Freud, "Recordar, repetir e elaborar"[4], há dois modos de dizer: pode-se dizer com palavras, isto é, recordar, graças ao simbólico. Quando alguém chega ao limite do simbólico, ao limite do dizer, então não se cala, como Wittgenstein propôs, mas, ao contrário, diz em ato, repete. Todorov mostra que dizer em ato é outro modo de dizer e, a partir daí, estamos na ordem do real. O real não pode ser dito, a não ser em ato. Assim entendo quando Lacan afirma: "trabalho no impossível de dizer", isto é, na dimensão do real, do ato.
(15/02/2012)
[1] Jacques Lacan, “O momento de concluir”, aula de 20 de dezembro de 1977, inédito.
[2] Sigmund Freud, A interpretação das afasias. Um estudo crítico. Trad. port. Antonio Pinto Ribeiro, Lisboa, Edições 70, 1977.
[3] Tzvetan Todorov, Teorias do símbolo. Trad. port. Enid Abreu Dobránszky, Campinas, SP, Papirus, 1996.
[4] Sigmund Freud, “Recordar, repetir e elaborar” (1914). Artigos sobre técnica.Obras completas, Trad. port. Paulo César de Souza, Companhia das Letras, SP, 2010, vol. 10, p 199.
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