domingo, 3 de maio de 2015

IX Encontro Internacional - Prelúdio 1 - Sonia Alberti




Entre Bindung e Entbindung: o fio do discurso.

Sonia Alberti

É nos primeiros Seminários de Lacan que incide a maior frequência do uso dos termos “enlaces e desenlaces”, se nos fiamos na tradução que se impôs quando nos decidimos por este título para o próximo Encontro Internacional da IF-EPFCL, em Medellín. Liaisons et déliaisons. Dessas inúmeras incidências, inicio com aquelas em que Lacan define os termos, com o Freud de Mais além do princípio do prazer e de Inibição, sintoma e angústia, identificando-os à Bindung, ou seja, a fusão das pulsões, e à Entbindung, desfusão das mesmas pulsões (explicitamente nos Seminários As formações do inconsciente e A transferência). Tal referência, nos leva diretamente para o campo pulsional, um dos quatro pontos cardeais da teoria e da clínica, como Lacan viria a sustentar em seu seminário sobre Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

O aparelho que Lacan propõe nesse Seminário como prototípico para a pulsão, dínamo de fazer cócegas no ventre de uma bela mulher, me foi lembrado quando, tendo tido o privilégio de visitar a exposição no Grand Palais em Paris em janeiro de 2015, o identifiquei com a obra “O fio do discurso” de Nicki Saint Phale, um dínamo muito semelhante ao “de fazer cócegas”, permitindo-me articular o cerne da questão que viso neste momento: a passagem do que se leu em Freud como dizendo respeito ao campo energético para o que propõe Lacan como o campo do discurso.

A articulação da teoria pulsional no contexto do Seminário sobre a Ética da psicanálise a implica numa historicidade, ou seja, na articulação significante, no que é possível memorizar, em função da força constante determinante para Freud conceituar a pulsão, rememorizar conforme os enlaces [liaisons] significantes, mas a partir de ex nihilo que, justamente, não diz respeito aos enlaces, não diz respeito ao saber, não diz respeito ao que é possível memorizar.

Na contramão de uma visada útil – que se organiza no certo momento histórico (frase de Lacan) em que Freud pode propor a psicanálise –, na contramão do discurso do capitalista, e na contramão de todo domínio do sentido que é a forma extrema dos enlaces – mortais –, Lacan viria a propor a ética da psicanálise articulada à pulsão de destruição enquanto esta visa colocar em questão tudo o que existe, articulando a pulsão de destruição à criação a partir do nada. A psicanálise, propriamente dita, já não tem nenhuma fórmula a priori que permita orientar-nos numa via do Bem, diria ainda Lacan em seu Seminário Os não-tolos erram, porque não há mais essa via.

Não que a psicanálise não pode ter resvalado no discurso capitalista, como o denunciava Zinberg quando procurava analisar os desvios dos psicanalistas norte-americanos no início da década de 1960… e que sempre novamente espreitam, internamente, inclusive, ali onde por exemplo a interpretação do sintoma pode levar ao fim da psicanálise (cf. A Terceira).

Donde a importancia de seu retorno a Freud, que levou Lacan a observar, por exemplo, que mesmo suspeita, a noção de pulsão de morte em Freud foi fundamental para indicar, naquele mesmo certo momento da história, que há um ponto radicalmente problemático, intransponível (cf. Lacan, J. O Seminário, livro 7: A Ética da psicanálise). É a partir dele que, ex nihilo, os enlaces podem se fazer…

A questão clínica que provoca as demandas em análise concerne os desenlaces quando o eu retira os investimentos dos significantes – em função disso, recalcados –, provocando desprazer. Se Freud foi o primeiro a constatá-lo, Lacan o retoma em seu Seminário sobre a Angústia. Mas isso não deve engendrar mal-dizê-los! São os desenlaces que permitem a criação na eterna dialética provocada pela repetição, com os enlaces possíveis a partir do campo da fala e da linguagem e são eles que permitem o campo clínico.

Para terminar, é crucial observar que não é à toa que Lacan privilegia, em muitos de seus Seminários, o emprego do termo liaison no contexto da relação com a mãe: enlace primordial, que leva o infans à sua lalangue, cuja utilidade é apenas de gozo – efeito enlaçado pelos discursos que, na melhor das hipóteses, visam o desenlace de um termo, perda para o sujeito, esse que sofre as consequências. É a partir dessas últimas que o psicanalista pode fazer valer seu ato colocando o sujeito no lugar do outro, ao qual se dirige, na contramão, como dizia, de todo discurso que o foraclui. Não há clínica psicanalítica fora disso.

Em O momento de concluir, finalmente, Lacan retoma a importancia do corte para a dissociação do enlace, visada sempre retomada ao longo de todo seu ensino para fazer valer a castração como fundamento da direção dada por Freud desde os primórdios de sua descoberta. Eis o que testemunha a importancia do lançamento desse título para nosso próximo Encontro: não há psicanálise senão na sustentação do binário enlaces e desenlaces, binário que se arrola entre aqueles que puderam ser estudados durante o Seminário R.S.I., no ano de 1975.

Rio de Janeiro, fevereiro de 2015.

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