domingo, 9 de outubro de 2011

III Encontro Internacional da Escola - Prelúdio 5

O PASSADOR VISTO A PARTIR DO CARTEL DO PASSE
Clotilde Pascual
Sabemos que no dispositivo do Cartel do Passe, instituído por Lacan, a figura e o papel do passador são cruciais. A escolha do passador por seu analista (AME) é um ato do analista, que em sua intervenção sugere que o analisante nomeado passador, está ele mesmo em um momento de passe. É por estar neste momento de passe que pode escutar o testemunho de um passante, que por sua vez quer dar o testemunho de uma passagem para o desejo de analista em sua própria análise e que, portanto está nesse momento de passe, no momento de passagem de analisante a analista. Como disse Lacan no Item V do texto Comptes Rendus, “no ato psicanalítico assumimos o momento em que o psicanalisante passa a psicanalista”.
Então ser nomeado passador é um momento constituinte para o analisante assim nomeado, e destaca a intervenção de um analista (AME). É um momento de virada e de efeito de interpretação. É, como disse Trinidad Sanchez de Lander em seu texto no Wunsch 10, tratar de responder à pergunta: “Que tipo de sujeito pode surgir que possua a capacidade de escutar uma voz que sendo portadora de um saber, não é o seu, que sendo portadora de um desejo, não lhe é comum?”.
Na verdade, é o passador que escuta o testemunho do passante e o “passa” ao Cartel do Passe, que deve “recolher” este testemunho desde o filtro do passador e verificar se houve na historicização do passante, uma passagem ao desejo de analista e uma repercussão deste desejo tanto na sua prática clínica como na vida pessoal.
Agora vou tentar colocar algumas observações e experiências a partir do Cartel do Passe, mas especificamente a partir da posição de ter sido membro de um Cartel no período 2008-2010 e de haver escutado seis passes, algo que tratei também em um texto publicado no mesmo Boletim citado anteriormente, o Wunsch 10.
Primeiro é constatar que os passadores escutados refletiam o que efetivamente haviam sido capazes de escutar, um testemunho que não era seu, e que tratavam de fazê-lo passar como um texto, no qual se centravam naquilo que o passante havia apresentado como discurso próprio e como estilo de seu Passe. Estes dois pontos me parecem cruciais para atestar que não haviam escutado o passante na posição de analista, e sim de “testemunhas” de um testemunho, que tentavam transmitir o mais fielmente possível.
Na maioria dos testemunhos escutados produzia-se um apagamento subjetivo do passador para que o testemunho de Passe fosse o mais fiel possível. Mas em outras ocasiões, em sua minoria, ocorria que o passador queria dizer muito do material do testemunho para compensar o que se fazia impossível de colocar como efeito de “passe”, desse momento de passagem ao desejo de analista. Também que, nesse dizer muito, o passador havia realizado muitas horas de escuta do testemunho do passante e o cartel verificou que todo esse tempo empregado, constatava o “impasse” do testemunho e a dificuldade do passador para aceitá-lo como tal “impasse”. A partir daí, nos pareceu a todos do cartel que o testemunho do passador sobre o passante não deveria ultrapassar - se possível – o tempo de uma hora, mesmo considerando que cada passe é particular e que em alguns casos é preciso alongar-se um pouco mais, ou escutar duas vezes o mesmo passante, como também aconteceu nesse cartel.
No extremo oposto se encontravam os passadores que faziam a exposição muito mais rápida, para proteger-se de deslizar em interpretações ou deixar-se levar por sua própria subjetividade. Também cumpriam esta função com as notas que tomavam e traziam ao Cartel, as quais na maioria das vezes e na medida em que se ia consolidando o testemunho, eram deixadas de lado ou utilizadas apenas para dados precisos.
O Cartel por sua vez assumia um papel ativo quanto a perguntar nas ocasiões que não eram claros, ou voltando a citar um determinado passador para retomar pontos que haviam ficado confusos na primeira exposição ou que pareciam muito diferentes do outro passador que testemunhava sobre o mesmo passante.
Nessa escuta de dois passadores se verificava a importância de escutar dois passadores para um mesmo testemunho, pelas nuances diferentes que surgiam e porque na escuta de um segundo passador sempre se podia concluir sobre algo escutado pela primeira vez do passador anterior, e discernir se os efeitos imaginários da escuta não impediram de situar melhor os momentos de passe do passante.
Disso tudo se deduz que para o Cartel do Passe é crucial o que o passador transmite, para que se verifique se poderá ou não, ser nomeado AE. O passador é essa “placa sensível” do passe, como disse Lacan, embora seja necessário que o Cartel do Passe, quer dizer, os membros do dito Cartel, estejam à altura do que se lhes pede, a saber, que possam escutar e chegar a uma conclusão sem que os efeitos imaginários ou de fixação a uma doxa teórica impeçam que se tenha em conta o que é importante, a passagem a um desejo de analista, com o que isto implica. Mas há claramente uma contingência, tratada já em muitos textos, as variáveis que todo discurso carrega, que impedem que haja um passe ideal e que nem sempre uma não nomeação de AE significa que não tenha havido esses momentos de passe, mas que, ou o passador ou o cartel não puderam, ou não souberam escutá-los, já que não há transmissão ideal.
É precisamente deste procedimento do passe, não ideal, que podemos pensar sua validade e sua função na Escola como “lembrete” desse ato analítico, que tende ao esquecimento ou ao horror do ato mesmo, em sua forma de defesa diante do que não se pode estabelecer a priori, seja em análise, onde uma interpretação tem efeito de “après coup”, seja no passe mesmo, no qual é com o tempo que se verifica esse passe e seus efeitos em todos os membros implicados e, é claro, especialmente no passante que tenha dado seu testemunho, independente de sua nomeação ou não.

Bibliografia
Lacan: Comptes rendus. Ornicar nº 29. Item V. 1967.
Wunsch nº 10: Contribuição dos Cartéis do Passe, 2008-2010. Cartel nº 2. Considerações sobre o passador e suas réplicas: Danièle Silvestre, Clotilde Pascual, Trinidad Sanchez-Biezma de Lander. Pág. 72-76.
Tradução de Gracia Azevedo

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