segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Prelúdio de Pedro Arévalo para o trabalho no Seminário do Fórum Lacaniano de Fortaleza em 2016

O sonho das emeradas vazias[1]
Cifrar do inconsciente - Decifrar do passe
Análise depois da análise?

Pedro Pablo Arévalo, AE (2014-2017),
Fórum da Venezuela.

O fim da análise se estendeu por uns seis meses, desde o atravessamento do fantasma até a queda do objeto a e a destituição subjetiva. Foi um período intenso, um caminhar difícil, guiado por múltiplas formações do inconsciente, em particular sonhos bastante elaborados. Comparativamente os últimos dois, que marcaram o fim da análise, foram sonhos aparentemente simples. Estavam conectados entre si por um curioso significante – emeradas –formulado pelo inconsciente, e apresentavam enigmas que o dispositivo do passe e o início do período de AE têm ajudado a (parcialmente) decifrar. 
Pouco depois de um sonho de passe e fim de análise[i], próximo já à conclusão, recebe o analisante uma correspondência relacionada com a nova sede do Fórum, tema para o qual estava dando seu apoio. Na correspondência se mencionava a palavra cansar (agobiar em espanhol), a qual ressoou dentro dele, estava como em sintonia com o ponto de conclusão em que se encontrava. Em seguida a remeteu ao cansaço. Cansaço do objeto a? ... Sentiu que naquele momento se desmontou a transferência, caiu o SsS e o objeto a, e se deu a destituição subjetiva do passe[ii]. 
Dois dias depois tem um sonho de conclusão, de síntese: O sonho das emeradas vazias. Nele parecia se insinuar o objeto a, causa do desejo, e o ágalma. Sonha com umas caixas, como caixas de sapatos, muitas caixas dispostas umas sobre as outras, e umas ao lado das outras, tal como ficam nas sapatarias. As caixas estavam vazias, e por fora estava escrita uma palavra enigmática: emeradas, escrita assim, em itálico, minúsculas e separadas as letras. O analisante-analisado mencionou o sonho em uma sessão, comentando unicamente que aquela palavra o fazia recordar a mirada (o olhar), seu objeto pulsional por excelência[iii]. Em nada mais reparou, nem mesmo que as caixas estavam vazias. Possivelmente aquele mesmo cansaço que havia precedido o sonho se refletia na inusitada falta de vontade pelo decifrar do inconsciente.
Na noite seguinte sonha que está dentro de uma emerada – assim o disse no sonho – ainda que não seja uma caixa, mas uma estreita gruta, com pouca altura, aonde não pode estar de pé. Disse também: O falo me vence[iv]. Estes dois sonhos marcaram a conclusão da análise. O primeiro era um sonho sem afeto algum; no segundo havia angústia. Depois deles ainda foi a um par de sessões, dedicadas a fechar alguns pontos sobre o fim de análise e o passe, cujas entrevistas começariam pouco depois. 
Para aquele momento essa foi toda sua elaboração. Mas o curioso significante do inconsciente fez, por assim dizer, a viagem de ida e volta no dispositivo do passe, desde as entrevistas com as passadoras até as interpretações ouvidas depois da nomeação. Um dos integrantes do dispositivo fez uma ponte entre o significante emeradas e a mirada (olhar), o objeto pulsional, escrevendo-o assim: m( )radas, onde se evidencia a elisão da letra i (deixando entre parênteses o espaço vazio), que é como a elisão do i de ilegítimo, significante mestre do gozo descoberto ou revelado pela análise. Surpreendente…
Esta interpretação fez o analisante prestar atenção novamente, um ano depois do sonho, no significante construído pelo inconsciente. Com aquela interpretação se entendia que o inconsciente não tivesse escrito miradas, com todas suas letras. Mas por que não m radas? Por que emeradas? Ou por que não emerada, no singular? E por que não em maiúsculas?... Algumas destas e outras questões seguramente ficariam sem resposta, mas notou que a palavra emeradas, escrita com a letra m como eme, ficava ladeada pelas iniciais do nome do pai, e estavam incluídas na palavra as iniciais da mãe. E mais, elidido o i do significante mestre do gozo, ficava agregado o e da estrutura fundamental da repetição, o escape. Mais ainda, o objeto que rotulavam as emeradas, remetiam ao objeto dos negócios do pai. Mas agora não eram caixas de sapato, agora eram caixas de vazio, caixas de falta! Chapeau! para o inconsciente.[v]
À medida que transcorre a transmissão[vi] no período de AE, continuam a elaboração e o deciframento. Um colega comenta outro elemento presente nas emeradas: la mère (mãe em francês): e-mère-adas. Reacomodo da figura materna?... Ele mesmo por sua vez observa a quase homofonia com émeraudes, é dizer esmeraldas. E realmente é uma esmeralda, uma pedra preciosa este significante formulado pelo inconsciente, enroscado nesse valioso (ou insignificante?) objeto ao que designa e que fecha o vazio. Em toda a construção ressalta a simetria, a sínteses, a completude, a articulação. Esta peça de ourivesaria mostra o cifrar do inconsciente na conclusão da análise, é um trabalho que recolhe, sintetiza e articula elementos fundamentais que de algum modo resumem a conclusão de todo um grande percurso da  análise.
Importante é observar que a elaboração e o deciframento do sonho, com seus consequentes efeitos subjetivos, se deram graças ao dispositivo do passe. Este processo de trabalho com os diversos elementos do testemunho há de continuar durante o período de transmissão, acrescentando à análise uma dimensão que transcende o dispositivo freudiano, e que inclusive vá mais além do dispositivo do passe, ainda que a possibilidade de aceder à última etapa passe necessariamente por ele… E esta elaboração-deciframento não é um mero jogo hermenêutico, não é exercício de vaidade, produz efeitos de análise, mas além da análise, agora não com o Outro do analista, mas ante o Outro e os outros da Escola.
A onde pode levar este processo, em relação aos efeitos subjetivos no analisado? Certamente não há, não pode haver outra conclusão depois do fim. Mas, talvez, sim um aprofundamento ou um aperfeiçoamento da posição subjetiva alcançada com o fim de análise e a passagem de analisante à analista. A conclusão lógica do processo, que não sempre se alcança (há términos não conclusivos de análises), implica múltiplas mudanças subjetivas transcendentais, aparte dos meros efeitos terapêuticos e o fim da relação analista-analisante, as sessões e o trabalho de análise: atravessamento do fantasma, com o conseqüente enfraquecimento da cena fundamental, destituição subjetiva (que fecha a passagem de analisante a analista e permite o  manejo da função desejo de analista), assunção da castração, abertura ao desejo, mudanças dos modos de gozo, identificação ao sintoma, poder dedicar-se completamente às obras – ao trabalho e ao amor - (o que não podia, finalmente pode[vii] )... É este por acaso um estado de graça perfeito que se alcança de um só golpe, de maneira plena e única? Creio evidente que não, que é um estado em que há graus, é um reacomodo subjetivo generalizado que se localiza em uma escala de estabilidade e consolidação. Pensa-se nada mais na assunção da castração. É que o fim da análise nos garantiria (1) que não vamos nunca nos aferrar – se esperaria que só de maneira pontual- a certos significantes tentando tapar (nos) a falta: Sou Fulano de Tal, com tais e quais títulos e reconhecimentos, ou (2) a alguma parcela de saber na qual acreditamos ter verdades absolutas? (Falo de qualquer campo de saber, incluindo evidentemente o psicanalítico, ou uma área profissional, ou um saber acadêmico, e até político - espero ao menos não me encontrar a alguém defendendo irrefutáveis, quase reveladas verdades religiosas...). Tampouco nos garantiria (3) a nunca cair depois num  impossível gozo inesgotável. Me parece evidente que sempre se pode ir mais além na assunção da castração. Similarmente para os outros elementos que implica um fim de análise. O fantasma se debilita, mas não desaparece. A destituição subjetiva se dá em potência, não como estado perfeito e perene. E assim sucessivamente.  
As anteriores são claramente considerações referidas ao analisado que faz o passe e acede ao período de transmissão. Mas também são de se esperar na Escola efeitos teóricos e subjetivos do trabalho conjunto no período de cada AE. Confiemos então em que se gerem efeitos de valor, tanto individuais como institucionais.

Caracas, janeiro de 2015.

Tradução: Luciana Guarreschi



[1] Uma primeira versão deste artigo foi publicada na rede da IF como prelúdio da II Jornada sobre o Passe, ocorrida em Pereira, Colômbia, em 14/02/15, intitulada Da cura de uma análise ao desejo do analista.


[i] O sonho das toalhas e dos lençóis no hotel; se relata no testemunho.
[ii] Diz Colette Soler (2001/2009, p. 74): Finalmente a destituição subjetiva do passe. Com esta expressão designo o momento em que o analisante, com toda sua experiência de analisante, se sabe determinado como objeto no Outro. Este Outro – cuidado – é o inconsciente. Não e o Outro como parceiro exterior, e por isso podemos dizer que existe o terceiro estado do sujeito destituído (...) Poderíamos dizer que o sujeito se encontra equivalente ao objeto a. É o fim, o único final possível – segundo Lacan – da indeterminação subjetiva. Tomado de “Clínica de la destitución subjetiva", en ¿Qué se espera del psicoanálisis y del psicoanalista? Buenos Aires, Letra Viva.
[iii] Um ano e tanto depois esse sonho lhe recordou uma passagem de Cem Anos de Solidão: José Arcadio Buendía sonho essa noite (…) com um nome que nunca havia ouvido, que não tinha significado algum, mas que teve no sonho uma ressonância sobrenatural: Macondo (Gabriel García Márquez, 1967, Colombia, Colección Clásicos Universales, p. 21).
[iv] Este sonho contém outros elementos; no testemunho se expõe completo.
[v] Certezas de que estas elaborações acertem, coincidam com o que cifrou o inconsciente? Nenhuma, como tampouco se tem durante o tempo de análise. Mas a concordância e os efeitos subjetivos dão um indício e, por outra parte, há que se estar atento ao que segue falando o inconsciente.
[vi] Mas que transmissão, com seu carácter unidirecional, é um trabalho conjunto na Escola, a partir do testemunho.
[vii] Colette Soler, 2013, p. 89. El fin y las finalidades del análisis. Buenos Aires, Letra Viva.

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