quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Espaço Escola - O Cartel



Essa atividade se constitui como um Espaço para discussões pertinentes à Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano (EPFCL) e ocorre sempre na última quinta-feira do mês, às 20h30m, com entrada livre a todos aqueles que se interessam em conhecer nossa Escola, seus princípios e funcionamento.Na próxima quinta ocorrerá o último Espaço Escola do ano, e será um encontro dedicado a discutir o cartel. Como provocação para os debates, seguem abaixo textos de colegas do Fórum Fortaleza apresentado na II Jornada de Cartéis do FCL-Fortaleza, ocorrida na sexta-feira passada.Coordenação: Andrea RodriguesData: 28.11.13Horário: 20h30Atividade gratuita aberta ao público




Cartel, lugar insone1
Osvaldo Costa Martins2
O Cartel, objeto desta comunicação, é um modo singular de estudo proposto por Jacques Lacan
como via de excelência para elaboração teórica no âmbito de sua Escola. Por que Escola, e não
Sociedade, Associação? Porque Lacan quis enfatizar uma forma de instituição que não fosse
calcado em hierarquias ou currículos (ROUDINESCO, 2000) nem inspirada em modelos oriundos
do meio universitário ou científico.
É o próprio Lacan, no prefácio ao anuário da EFP de 1971, que explica o uso do termo:
O termo Escola vem agora a nosso exame. Deve ser tomado no sentido que nos tempos
antigos queria dizer certos lugares de refúgio, e até bases de operação contra o que já podia
chamar-se de mal-estar na civilização.
Os tempos antigos a que se refere sugerem aqueles quando Platão atuava em sua Academia. Não
nos esqueçamos de que Lacan, entre 1953 e 1963, manteve um Seminário onde congregava
inúmeros psicanalistas franceses e, três anos antes de fundar a Escola Freudiana de Paris, dedicouse
a comentar O Banquete, de Platão, durante o qual atribuiu a Sócrates o lugar do psicanalista. Para
Roudinesco,
Lacan reinventou o diálogo platônico empregado por Freud, de 1902 a 1907, no seio da
Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras. Contudo, a partir de 1964, forçado a deixar a
IPA, ele fundou uma nova forma de instituição psicanalítica. Ao banquete socrático
sucedeu-se a academia platônica: a escola (2000, p.164)
Em 1964, quando Jacques Lacan anunciou a fundação da Escola Freudiana de Paris,
propôs, no mesmo ato, o CARTEL como dispositivo de sua Escola. Destacamos que o lugar do
Cartel na Escola de Lacan não é um qualquer, mas, conforme sua própria qualificação, um lugar de
base, logo, de sustentação da Escola.
Etimologicamente, a palavra cartel remete à cardo/carda, que significa “dobradiça”3 e
também dava nome às Cardas, deusas romanas das portas e umbrais. O termo aparece ainda no
adjetivo cardeal que qualifica as quatro principais virtudes humanas na doutrina católica, isto é, as
virtudes cardeais. Notemos que o termo conota as ideias de báscula, articulação ou eixo. Observa-se
isso no nome das deusas Cardas, aludindo àquelas que protegiam a entrada dos templos e portas das
moradias romanas mais ricas; também em virtudes cardeais, ou seja, as virtudes às quais se
1 Produto resultante do Cartel Psicanálise e Escrita, inscrito na Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo
Lacaniano/Brasil
2 Psicanalista, Membro do Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza
3 A referência ao termo dobradiça é do próprio Jacques Lacan, no prefácio ao anuário da EFP em 1971 e em A
Função dos Cartéis (1975, p.67)
articulam as demais virtudes humanas de acordo com o catolicismo e, por fim, é assim na noção de
Cartel, dispositivo sobre cujo eixo giram os princípios de estudo e formação na Escola de Lacan.
Alguns autores (ROUDINESCO) sugerem uma longínqua inspiração de Lacan para
certa características do cartel: a experiência de Bion e Rickmann com trabalhos em grupo no
exército inglês. O contexto histórico era o final da 2ª Guerra Mundial. Lacan visitara Londres em
1945, ficara admirado com o trabalho dos dois psiquiatras, relatando tal experiência no texto A
psiquiatria inglesa e a guerra, publicado em 1947.
Os Grupos propostos por Bion eram marcados justamente por um esvaziamento da
função do líder, tomada no sentido que Freud apontara em Psicologia das Massas e Análise do Eu.
Isso parece ter merecido especial atenção de Lacan. Diz ele: “Toda vez que se recorria [algum
membro do grupo] a sua intervenção, Bion, com a paciência firme do psicanalista, devolvia a bola
aos interessados: nada de punição...”(1947/2003, p.115). Em outro ponto do texto, Lacan descreve
as “regras” do grupo de Bíon:
Eis, portanto, o regulamento que ele promulgava numa reunião inaugural com todos os
homens: seria formado um certo número de grupos, cada um dos quais se definiria por um
objeto de ocupação, mas eles ficariam inteiramente entregues à iniciativa dos homens, isto
é, cada um se agregaria ao grupo a seu critério, como também poderia promover um novo
grupo conforme suas ideias, com a única limitação de que o próprio objetivo fosse novo, ou
seja, não se criasse o duplo emprego com o de outro grupo. Ficou entendido que era
permitido a todos, a qualquer momento, retornar para o alojamento (…) sem que para isso
lhe coubesse outra obrigação senão a de declará-lo à supervisora (LACAN, 1947/2003,
p.114.
Será que poderíamos entrever no cartel, conforme proposto por Lacan em 1964, alguns
traços atávicos do grupo sem chefe, ou sem líder, de Bíon? Para Delma Gonçalves (2003,p72), “no
cartel, como nos grupos de Bíon, forma-se um grupo sem chefe, para que se subtraia essa armadilha
narcísica, ligada à essência radicalmente simbólica desse significante, que é assinalar a falta”.
Deixo aqui essa breve indicação como um vestígio para quem mais se interessar em
retomá-lo depois, na trilha do método de “investigiação”, isto é, de investigação adotado por S.
Freud, Conan Doyle e Carlo Ginzburg. Retomemos a vereda inicial.
Por ocasião de fundação da Escola, Jacques Lacan descreveu o Cartel assim:
Aqueles que vierem a esta Escola se comprometerão a realizar uma tarefa submetida a um
controle interno e externo (…) Para a execução desse trabalho adotaremos o princípio de
uma elaboração baseada num pequeno grupo; cada um deles ( e temos um nome para
designar esses grupos) será composto por três pessoas, no mínimo, e por cinco no máximoquatro
é a medida certa. MAIS UMA, encarregada da seleção, da discussão e do destino
reservado ao trabalho de cada um. Após certo tempo de funcionamento, se proporá aos
elementos de um grupo sua permutação para outro.
Vemos aí, desde a proposta inicial, todos os elementos que atravessarão os 16 anos
seguintes da elaboração teórica de Lacan concernente ao cartel: um pequeno grupo, delimitado entre
o mínimo de três e o máximo de cinco pessoas MAIS UMA, que é submetido a um corte necessário
efetivado pelo Tempo. Em 1980, é essencialmente a mesma ideia que se lê no escrito intitulado
D’Ecolage, publicado no mês de Março na Revista Ornicar?:
Dou partida à Causa Freudiana – e restauro em seu favor o órgão de base retomado da
fundação da Escola- ou seja, o cartel- do qual, feita a experiência, aprimoro a formalização.
Em primeiro lugar - Quatro se escolhem para levarem a cabo um trabalho que deve ter seu
produto. Preciso: produto próprio a cada um, e não coletivo;
Em segundo lugar - A conjunção dos quatro se faz ao redor de um Mais-Um, que, sendo
qualquer um, deve ser alguém. Será encarregado de velar pelos efeitos internos do
empreendimento e de provocar sua elaboração.
Em terceiro lugar - Para prevenir o efeito de cola, deve ser feita uma permutação no prazo
estabelecido de um ano, no máximo dois.
Em quarto lugar – Não se espera outro progresso senão o de uma periódica (e pública, a céu
aberto) exposição dos resultados assim como das crises do trabalho.
Em quinto lugar - O sorteio assegurará a renovação regular dos limites demarcados (das
referências criadas) com o fim de vetorializar o conjunto.
O Cartel distingue-se, portanto, por ser a) um pequeno grupo, marcado pela ausência de
mestre b) constituído de 3 a 5 pessoas mais uma; c) reunidas para trabalhar um tema por, no
máximo, dois anos. Para Zilda Machado: “O cartel tem como característica primordial ser diferente
de um Seminário, centrado em torno de um mestre, e de um grupo de estudos, centrado em torno de
um coordenador” (2004, p. 92).
Para constituir um cartel, 3,4 ou 5 pessoas se escolhem a partir de um tema proposto,
designam alguém para funcionar como o MAIS-UM e iniciam um trabalho de pesquisa e elaboração
que, ao final, deve culminar na produção de escritos individuais a serem publicamente apresentados.
Indagado sobre se o MAIS UM deve ser sorteado, Lacan é direto: “não, os quatro se associam e o
escolhem” (1980b, p.55).
Conforme Godino Cabas (1994), “ O signo 'mais' que integra o nome desta função não
identifica a operação da adição, quatro mais um não fazem um grupo de cinco mas um conjunto de
quatro mais um (…) O resultados é que o “mais” não é um signo algebraico; é um significante que
denota separação. A fórmula deve ser lida ao pé da letra: quatro separados um por um”
Se Lacan distingue, dentre os membros do cartel, um por um termo específico, o MAIS
Um, é também para evidenciar que sobre este recai uma função distinta. A pessoa que estará nessa
função deve ser expressamente designada pois ainda que a função possa ser ocupada por qualquer
um, deve ser por alguém. O mais-um
tem como função justamente a de, ao ser designada para esse papel, não ocupar a posição
esperada do líder e da suposição do saber. E isso para fazer com que cada componente do
cartel realize um trabalho pessoal e não se deite no conforto de fazer o que o mestre mandar
e de aprender o que o mestre ensinar. O mais-um, é aquele que aponta para o furo da função
do líder para fazer o saber circular, fazendo de cada um, um mestre (QUINET, 2004, p.)
Temos, então, que o mais um não é uma pessoa escolhida para “ensinar conteúdos” ou
lecionar para os demais, “toda chefia, no sentido de atitude professoral de um dos elementos de um
cartel, é abandonada de saída” (MARTIN, 1975, p.66). Não importa tanto o percurso de sua
formação, mas a possibilidade de trabalhar para velar pelo lugar vazio de mestre. Sua função é,
principalmente, a de colaborar para evitar ou minimizar os efeitos nocivos das identificações
grupais. Opera, pois, como aquele que subtrai para fazer circular uma economia.
Nas palavras de Zilda Machado, o papel do +1 “será descompletar o grupo para
conseguir o que é seu objetivo, o ponto crucial: causar a elaboração dos sujeitos, provocar a
elaboração de um trabalho escrito, individual, que deverá ser dirigido à comunidade e apresentado a
'céu aberto'” (2004, p.93). Além disso, como sempre sustentou Lacan, o MAIS UM é encarregado
da seleção, da discussão e do destino reservado ao trabalho de cada um.
Há relevância também na dimensão temporal implicada no Cartel. Por isso, foi
estabelecido o mínimo de um ano e o máximo de dois para a conclusão dos trabalhos e a dissolução
dos cartéis. Tão importante quanto a estipulação do prazo é saber que ele existe e é contado em
favor dos trabalhos a serem realizados. “O tempo é a medida das coisas que passam”. Dito em
termos psicanalíticos, o tempo e suas relações com a finitude correm a favor da castração e impelem
o sujeito ao trabalho de elaboração. No cartel, o tempo “insere um ponto de 'basta': não temos o
tempo todo do mundo; se o gastamos na procrastinação ou na afobação, ele é corroído pela morte
(…) Há, portanto, a incidência da função da pressa no cartel e, como efeito, uma precipitação do
momento de concluir, cujo resultado é um trabalho que traz a marca do sujeito” (MACHADO,
2004, pp. 93-94).
Trabalhar em um cartel não é experiência de conforto. Sua estrutura, se alcançado o
bom funcionamento, convoca o participante não à exibição, mas à exposição: de suas ignorância e
questões, dos impasses, e também de um saber que deve suportar sempre um insabido. Num Cartel,
diz Dominique Fingermann, cada um “ é convidado a fazer a experiência de um novo laço com o
outro: precisa contar com o outro sem depender dele. Precisa se fazer ouvir e conseguir ouvir o que
o outro tem a dizer” (2008, p.35).
De fato, não se passa incólume pela experiência de um Cartel, assim como por uma
análise. Certa vez uma analisante disse à analista: “ ‘É necessário que eu me inscreva num cartel,
mas é mais doce continuar a sonhar minha vida”. E a analista acrescentou : “ é doce o duro desejo
de dormir” (MENARD, 1975,p. 77).
CABAS, Antônio Godino (1994). Do Mais-um. O Cartel: conceito e funcionamento na Escola de
Lacan. Stella Jimenez (org.), Rio de Janeiro, Campus, 1994.
FINGERMANN, Dominique (2008). O Cartel funciona? Apoena. Campo Grande, n.1, 2008.
LACAN, Jacques. (1947) A psiquiatria inglesa e a guerra. Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 2003.
LACAN, Jacques. (1964a) Ata de Fundação da Escola Freudiana de Paris. Letra Freudiana. Rio de
Janeiro, n.0,s/d.
LACAN, Jacques. (1964b) Nota Anexa à Ata de Fundação . Letra Freudiana. Rio de Janeiro,
n.0,s/d.
LACAN, Jacques. (1980a) D’écolage. Letra Freudiana. Rio de Janeiro, n.0,s/d.
LACAN, Jacques. (1980b) Senhor A. Letra Freudiana. Rio de Janeiro, n.0,s/d.
MARTIN, Pierre. (1975/1980) A Função dos Cartéis. Letra Freudiana. Rio de Janeiro, n.0,s/d.
MENARD, Hugette. (1975/1980) A Função dos Cartéis. Letra Freudiana. Rio de Janeiro, n.0,s/d.

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A provocação do Mais-um
Elynes Barros Lima

Deparei-me recentemente com o texto de Lacan chamado D’Écolage. De pronto o neologismo do título chamou-me atenção. Corri os olhos na nota de roda-pé do texto e descobri que ele faz alusão a alguns termos como “descolarização”, que remete à Escola, “descolagem”, que remete à noção de cola, e “decolagem”, que remete a “sair voando”. Este texto corresponde a 3ª aula do Seminário 27, que se chama Dissolução. Assim, todos esses termos que decorrem do neologismo D’Écolage, estão, em suma, relacionados à Dissolução. Nesse momento Lacan está dissolvendo sua escola a EFP (Escola Freudiana de Paris) e fundando a Causa Freudiana, que ele chama de campo e não de escola, e não é sem propósito que todos esses termos estejam aí colocados. Retomarei essa discussão mais adiante, por hora, gostaria de enfatizar outra coisa que me chamou atenção e tornou-se o motivo da escrita desse trabalho.
Fazendo parte de um cartel peculiarmente constituído, pois seus participantes estão distantes geograficamente, encontrando-se quinzenalmente via skype, ocorreu-me investigar se a função do Mais-Um e a condução do trabalho no cartel sofreria algum efeito dessa distância ou pelo uso dessa ferramenta.
  O tema proposto por este cartel do qual sou Mais-Um, “O Amor e suas fronteiras” levou-me a refletir sobre os laços transferenciais e pensar com Freud: o que liga? Em seu texto Psicologia das massas e análise do eu, Freud vai dizer que as relações amorosas constituem-se a essência da mente grupal. Ele diz: “...um grupo é claramente mantido unido por um poder de alguma espécie; e a que poder poderia essa façanha ser mais bem atribuída do que a Eros, que mantém unido tudo o que existe no mundo?” (p. 117)
Mas Freud ainda se pergunta nesse texto, de que natureza seriam os laços existentes entre os membros de um grupo? (p. 131) Parte então da análise do mecanismo de identificação, que é a forma mais primitiva e original de laço emocional, e enumera três tipos de identificação: identificação ao pai, identificação ao sintoma e identificação histérica, para concluir que: “o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação desse tipo (identificação histérica) baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder”. Freud conclui que a ligação existente entre os indivíduos de um grupo consiste no fato deles colocarem, um só e mesmo objeto, no lugar de seu ideal do eu e se identificarem uns com os outros em seu eu.
Assim, entre os fenômenos que manteriam unidos os membros de um grupo e esses ao seu líder, Freud aponta o “amor igual”, que pode ser encontrado principalmente em dois grupos, no exército e na igreja, cuja perda do líder pode levar seus membros à situação de pânico. O medo, segundo Freud, irromperia pela quebra dos laços emocionais, e esse processo estaria na origem do medo neurótico e na ansiedade.
Para amenizar os efeitos dos fenômenos de grupo, próprio a todo ajuntamento humano, Lacan institui na Ata de fundação de sua Escola, o cartel.  Que tipo de ligação Lacan propõe ao instituir o cartel? Retomando o texto da Ata de fundação (p. 235), lemos: “Para execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo.” Depreende-se daí que a ligação entre os membros desse grupo pequeno está apoiada na execução de um trabalho; seus membros estarão ligados por uma transferência de trabalho. Aqui podemos salientar a contribuição de Lacan ao conceito de transferência, como amor que tem todas as características do amor comum, mas é amor que se dirige ao saber.
Lacan institui o cartel como a base do funcionamento de sua Escola, sendo que a adesão a ela será feita mediante a participação em um pequeno grupo de trabalho. Esse pequeno grupo, segundo ele, será formado de no mínimo 3 pessoas e no máximo cinco, sendo 4 a justa medida, e também MAIS-UM, encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um. Em 1980, depois de alguns anos de trabalho nesses grupos, Lacan acrescenta justamente nesse texto D’Écolage, o qual citei no início, algumas modificações na função do MAIS-UM, dizendo que mesmo sendo uma função que pode ser exercida por qualquer um, deve ser alguém e que o mesmo “seria encarregado de velar pelos efeitos internos do empreendimento e PROVOCAR a elaboração”.
A partir desse segundo momento, em 1980, a função do Mais-Um passa de um administrador, para um provocador. Que provocação seria essa?
Antes de avançarmos nessa e em outras questões, recorramos ao dicionário (Houaiss). Nele encontramos algumas concepções para a palavra provocar:
1. forçar (alguém) a responder a um desafio; desafiar
2. dizer desaforos a; insultar
3. impelir, incitar, instigar
4. ser a causa de; causar, ocasionar
5. fazer perder a calma; irritar, perturbar
6. estimular o desejo sexual de;
7. pro-vocar =  voz – vocalizar = fazer falar, instigar à fala.

            Provocar, como vemos, pode ter várias conotações, desde irritar, brigar até estimular o desejo sexual, passando por causar, instigar. Uma dessas concepções pareceu-me precisa para o debate sobre a função do Mais-um: “forçar alguém a responder um desafio”. Observamos que essa provocação parece responsável por ligar os membros de um cartel na medida em que mantém o trabalho em andamento, só que essa ligação não é da ordem da identificação, mas de um enodamento.
            No Seminário RSI, Lacan vai dizer que todos desejam a identificação com o grupo e que isso é compreensível, porém devem estar advertidos de saída que o nó só se constitui na não relação sexual como buraco. Retoma a fórmula do cartel e faz uma analogia ao nó borromeano: “Não dois, pelo menos três, e o que quero dizer é que se vocês só forem três, isso já faz quatro. A mais-uma estará aí mesmo que sejam só três, (...) Mesmo que sejam só três, isso faz quatro, donde minha expressão mais-uma.” A identificação possível para Lacan se dará ao coração do nó, ao seu centro, onde se situa também o desejo, o objeto a, causa de desejo. Essa identificação é semelhante àquela proposta por Freud como identificação histérica, diz Lacan.
Qual seria a diferença então, entre Freud e Lacan? O nó. Não se trata de um laço, de uma ligação, mas de um nó, que pressupõe de saída, um furo. No lugar da identificação ao líder, às suas ideias fascinantes, no cartel, há uma subversão: cada um é provocado a dar algo de si: “...terá liberdade para demonstrar o que faz com o saber que a experiência decanta”.
É por isso que mesmo na dissolução de sua Escola Lacan pai severo, persevera (père séverè) e mantém o cartel convocando o Mais-Um a uma provocação. Em que medida, então, essa provocação do Mais-Um poderia instituir um laço possível de trabalho, sempre inédito e descolado, e que faria avançar a transmissão da psicanálise? Só a experiência dirá, como apontou para Lacan o que ía mal em sua Es-cola, e o fez apostar no cartel aprimorando sua formalização, não sem indicar-nos um caminho: a exposição periódica dos resultados e das crises de trabalho. Retomo aqui a questão levantada no início desse trabalho sobre sua peculiaridade no uso da internet como ferramenta, seria essa forma de trabalho um impedimento para o funcionamento do cartel, como proposto por Lacan? 
O que impedem os avanços são os desvios, dizia Lacan no seu texto Dissolução, que está em: Outros Escritos (p. 320); desvios e concessões que fizeram os laços grupais falarem mais alto do que o discurso, por isso ele propõe uma descolarização; quem sabe, des-colando do sentido, o inédito, o novo possa advir? Lacan apostava que descolarizando, os que ele abandonava poderiam então mostrar o que sabiam fazer – uma provocação? Ele responde: “uma chance de voltar a partir” (Meu Ensino p.), decolando.  



BIBLIOGRAFIA

J. Lacan, D’Écolage (1980), Revista da Letra Freudiana: Escola, Psicanálise e Transmissão, Documentos para uma Escola, ano I, n.0, Rio de Janeiro, s/d.

S. Freud. Psicologia dos grupos e análise do eu (1921), in: Obras completas da ESB, vol 18.

J. Lacan. Ato de Fundação, In: Outros Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003.

Dicionário Houiss

J. Lacan. Seminário XXII: RSI

J. Lacan. Dissolução, in: Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003.

J. Lacan. Meu Ensino. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.,
                        



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