O QUE PODE PASSAR
Emilia Malkorra Arsuaga
Lacan não esperava que se posicionasse como analista, aquele que ocupasse a posição de passador, coisa que havia ocorrido em alguns casos, e nem esperava que o passante falasse ao passador como a um analista veterano. Recomendava inclusive que se recrutassem os passadores entre os recém chegados. Por um lado porque não se fala a um passador como se fala a um analista veterano. Por outro lado, Lacan não esperava que o passador tivesse um domínio da teoria, como tão pouco que o testemunho do passante fosse uma exposição de saber sexual.
Além do mais, a transmissão indireta- pela interpretação do passador- introduz certa correção ao efeito de alienação ao discurso do Outro: “em muitos casos vemos uma tendência dos passantes em falar a doxa do momento”... . Os passadores são em geral bastante refratários a este discurso porque são analisantes e não recebem os fragmentos de discurso pré-fabricado com a idéia de que seja algo autêntico...”. (1)
O saber está do lado do passante, e o saber que se espera que ele transmita ao dispositivo está em relação ao que o fez autorizar-se a ser analista. Leiamos a Lacan. Trata-se de saber “porque alguém assume esse risco louco de converter-se no que é esse objeto, no que é esse objeto enquanto que no final das contas ele não representa outra coisa a não ser certo número de enigmas polarizados, os quais, para quem fala, são os que se presentificam nessas grandes funções que não deixam de estar, por outra parte, profundamente ligadas ao corpo, a saber: o seio que nutre, a separação, o desmame, o recusado, a merda, para chamá-la por seu nome, ou ainda essas coisas que, por ter um aspecto mais nobre, são estritamente do mesmo nível, quero dizer, o olhar e a voz” .(2)
Trata-se de agarrar algo do desejo do analista, na singularidade de cada passante. O passador põe em jogo sua destituição subjetiva ao serviço da transmissão. Espera-se que ele possa oferecer um lugar vazio no qual se pode alojar o testemunho do passante e transmiti-lo. O único modo para que o passador não seja um elemento contaminador é precisamente, não sendo.
Na “Proposição de 9 de outubro de 1967” de Lacan lemos que o passador é o passe. Como entender esse “ser o passe”? Leiamos a citação: “Donde se poderia esperar, portanto, um testemunho correto sobre aquele que transpõe esse passe, senão de um outro que, como ele, o é ainda, esse passe, ou seja, em quem está presente nesse momento de des-ser em que seu psicanalista conserva a essência daquilo que lhe é passado como um luto, com isso sabendo, como qualquer um na função de didata, que também para eles isso passsará”?(3)
Lendo essa citação parece evidente que Lacan relaciona o des-ser com o passador, no entanto, dois meses mais tarde, no discurso à E.F.P. de 6 de dezembro de 1967”, Lacan se surpreende de que o termo des-ser da citação anterior tenha sido entendido como atribuído ao passador. E aqui ele nos diz: “( o des-ser com que ele é afetado) como término a ser atribuído a cada psicanálise, e que me espanta reencontrar deve assinar a cada psicanalista, termo que me surpreende encontrar em tantas bocas desde minha proposição, como que atribuído àquele que inflige o golpe, por estar no passe, conotando unicamente uma destituição subjetiva: o psicanalisante”, e continua: “Aquilo de que se trata é de fazer com que se entenda que não é ela (a destituição subjetiva) que faz des-ser, antes ser, singularmente e forte... Nada a ver com o des-ser, cuja questão é saber como pode o passe enfrentá-lo ao se ataviar com um ideal do qual o des-ser se descobriu, precisamente porque o analista já não suporta mais a transferência do saber nele suposto”.(4)
Podemos então entender que o passador oferece ao dispositivo sua destituição subjetiva para ser o passe enquanto exerce sua função? A destituição subjetiva está do lado do passador e o des-ser do lado do passante?
Ocorre que aqui não é fácil distinguir quando Lacan se refere ao passante ou ao passador. Guy Clastres em referência ao texto de Lacan intitulado “nota sobre a eleição de passadores” de 1974 assinala que a própria estrutura do texto é uma estrutura moebiana, as vezes parece que Lacan fala do passador e as vezes do passante. Isto é para dar conta de algo; mesmo quando as funções estão bem esclarecidas, trata-se de fazer com que algo passe mais além do que cada um sabe. Algo pode passar.
A posição do passador que “não sabe” está longe de ser passiva. O saber inconsciente adquirido em sua análise deve permitir-lhe por em jogo seu desejo para que algo passe. Seguindo a Guy Clastres: “o passador deve poder fazer parir ao passante sua verdade em relação a esse ponto”(5) referindo-se ao desejo do analista ainda que , como disse Lacan: “Ninguém poderia interrogar ao outro sobre isso estando ele mesmo captado por isso”(6).
Leio a interpretação que dá Guy Clastres a esta última frase: “Inclusive se um passador está capturado, a partir da experiência analítica por uma pergunta, a pergunta da verdade que interroga o saber, não é certo que possa interrogar validamente ao passante sobre o que o levou a decidir-se a tornar psicanalista”.(7)
Algo passa para todo aquele que participa do dispositivo, ainda que as vezes não passe o que se espera. Passa o que pode passar.
Agosto de 2001
Tradução de Elisabeth da Rocha Miranda
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