terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Melancolia - de Lars von Trier

Comentário de Andréa Brunetto (FCL-MS -  AME da EPFCL)

Melancholia, de Lars Von Trier é um filme sobre o fim do mundo. Essa metáfora começa representada por três cenas que são cópias de três quadros. O primeiro, creio que de Magritte, com pássaros mortos caindo do céu. Que essa seja uma mensagem do fim do mundo já é batida, foi usada em muitos filmes e não está no Apocalipse também? O segundo é um quadro - tenho uma dúvida - de Brueghel ou Avercamp e o terceiro, Justine morta, no rio, com as flores sobre o colo, é A morte de Ofélia, de J. E. Millais. Só ai já podemos saber qual é o fim do mundo para Justine: o fim do amor. É uma visão do filme: para uma mulher, a morte do amor, a perda do amado é a explosão de um planeta.


Há mais uma coisa que, parece-me, é para assegurar que o fim do mundo é o fim do amor: a música de abertura é Tristão e Isolda de Wagner. Com Tristão e Isolda e Ofélia, Justine é a própria encarnação do amor impossível, da mulher abandonada, atormentada. Vejam só que é Wagner, o compositor preferido de Hitler que abre o filme de Lars Von Trier. Nisso ele também pode entender Hitler? No gosto por Wagner? Wagner virou um compositor proscrito depois que Hitler gostou dele, de sua obra. Tem inúmeras orquestras e países em que ele não pode nem ser tocado, mencionado. Dizer, em Cannes, que poderia entender Hitler também foi uma metáfora de Lars von Trier? Como eu não tenho nada contra Wagner, aliás acho um grande compositor, estou escutando agora, enquanto escrevo para vocês, Abertura e Morte do amor de Tristão e Isolda, de Wagner. Música soberba.


Os personagens masculinos são absolutamente patéticos no filme. Começando pelo pai de Justine e Claire. Um homem para quem todas as mulheres são qualquer uma, para não cometer enganos já chama todas de Beth. A filha Justine passa o filme todo apelando para ele escutá-la e ele não está nem aí. No último apelo, quando pede para ele dormir lá, ele deixa a carta sobre a cama, dizendo que não pode e escrito assim ?para minha filha Beth?. Até a filha é qualquer uma, que ele não tem de dar atenção. O chefe de Justine é um pulha capitalista que só pensa em money; o marido de Justine, a quem ela pede que espere por ela, a deixa e o que parecia mais confiável, o rico marido de Claire, é o primeiro a sucumbir ao medo quando o fim se aproxima. Suicida-se, deixando as mulheres e o próprio filho sozinhos. Os homens são todos uns covardes nesse filme de Lars.


O filme é também sobre como as crianças devem ser protegidas do horror. Claire e Justine não o foram. Nunca. Nem no dia do casamento de Justine, seus pais têm o cuidado de não colocar seu ódio e pessimismo em jogo. Pelo contrário, expôem suas mazelas sobre as filhas. O marido de Claire, que a protegia das verdades, não fazia isso com o filho. Pelo contrário, não dava nenhuma esperança a ele: tudo caminha para o fim e pronto.


É a personagem Justine quem o faz: a colisão do planeta, morte do amor e fim da vida, sempre chega, mas agora podemos nos proteger nessa caverna mágica.

Estou aqui relendo a entrevista que Lars von Trier deu para a Veja em 7 de setembro de 2011. Ele diz que a depressão é o fim do mundo. E conta de sua mãe cruel. Mãe cruel é a de Lars von Trier. O resto é fichinha perto dela. E nessa entrevista ele nos dá a chave para entender seu Melancholia: ele diz que 'as personagens femininas sou eu". E continua: "bolei um truque muito esperto ...O que faço é escrever um filme sobre mim, dividindo-me em dois personagens masculinos. Dai escrevo vários papéis femininos - todos de mulheres que são idiotas, idealistas ou covardes. Clichês, enfim. Mas, na hora de começar a roda, inverto os papéis: os masculinos se tornam femininos, e vice-versa". Vejam então que ele é Justine e Claire, ao mesmo tempo. Dois personagens que primeiro ele pensou masculinos e depois viraram mulheres.


Mas o porque a mãe dele é um horror: antes de morrer, toda entubada, no hospital, conta-lhe que o homem que ele pensou a vida toda que fosse seu pai, não o é. Seu pai é um amante que ela teve por longo tempo. E se vai, sem explicar mais nada, sem ele poder brigar, peguntar, descobrir a verdade. Assim, desolado, tendo perdido o pai e a mãe ao mesmo tempo - o que sobra de um amor maternal depois disso? - lhe sobrevêm a depressão, e esse "fim do mundo" tem lhe acompanhado há muito. Pelo que ele conta nessa entrevista, dessa tragédia humana, ele fez uma metáfora, uma bela metáfora sobre o amor, a verdade e a vida. E também sobre as covardias. Sejam de homens ou de mulheres, não importa.


Depois desse filme e dessa entrevista, minha admiração por Lars von Trier só fez crescer.



segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

VII Encontro da IF-EPFCL - Prelúdio 3



O QUE RESPONDE O PSICANALISTA? ÉTICA E CLÍNICA
6 – 9 Julho de 2012

Prelúdio 3:
O QUE O ANALISTA RESPONDE.
Ana Laura Prates

Em 1969, Lacan escreveu que em sua concepção, “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”: a verdade do casal parental. O emprego do verbo responder atribuído à posição da criança, nesse contexto, pode ter também o sentido de corresponder, tal como no poema de Baudelaire1 CorrespondencesLês parfums, les coulers et les sons se répondent.2 Essa correspondência entre o Outro e o sujeito, remete ao irredutível da transmissão de um desejo que não seja anônimo3.
Há uma topologia na transmissão, que reforça sua conotação de envio, de algo que passa de um lugar para outro. Aqui, lembramos d’ A Carta Roubada, de Edgar Alain Poe e do Seminário que Lacan lhe dedica: aquilo que falta em seu lugar é o simbólico, já que o real o leva colado na sola. Quando se trata do sujeito do inconsciente, do desejo e da falta, a carta – em sua eficácia simbólica – sempre chega a seu destino. Ora, se cabe ao Outro transmitir a castração, cabe ao sujeito, a resposta. Num primeiro momento, poderíamos afirmar que a resposta do sujeito à falta do Outro é a fantasia, que sustenta o sintoma enquanto metáfora. Mas Lacan avança do passo de sentido da metáfora ao sem sentido do gozo. Se a partir da letra (carta), enquanto distinta do significante, podemos escrever o discurso sem palavras, é porque há uma impossibilidade lógica do lado do pai. É lá onde o pai é um lugar “vazio e sem comunicação” 4 (sem resposta) que ele exerce sua função de transmissão, não somente do sentido que insiste e consiste, mas, sobretudo de uma orientação que aponta para o real que ex-siste e para A mulher que não existe. À verdade do casal parental – não há relação sexual –, o sujeito, resposta do real, co-responde com o sintoma, um modo singular de gozo.
É com essa carta na manga que se chega ao psicanalista, aquele cuja oferta possibilita a escrita do único discurso que agencia o objto no lugar do semblante. Eis a possibilidade inédita de um dispositivo que acolhendo a co-respondência entre o sujeito e o Outro permitirá, entretanto, a escrita de uma carta (letra) que não seja mais uma « roubada ». Não é que Lacan alce o analista – como queria Derrida – no lugar do « carteiro da verdade ». Longe disso!
Qual é, então, a resposta do analista frente aos modos redutivos da demanda neurótica que operam a exclusão do real como impossível? O analista, com seu ato, responde com “a equivocidade pela qual cada alíngua se distingue”5. Assim, se a resposta do analista – radicalmente original na civilização – resgata por um lado a correspondência estraviada entre o sujeito e o Outro, é tão somente para embaralhar suas letras esvaziando seu sentido. É a prática do analista que “deve dar conta de que haja cortes do discurso tais que modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente” 6Eis a po(ética) do ato analítico. Em 1977, Lacan lança uma provocação: seria, o Psicanalista, poeta o suficiente? Aqui, a resposta da interpretação encontra a via pela qual se privilegia a homofonia e os jogos com a língua. Esses jogos, segundo Lacan, “os poetas os calculam e o psicanalista se serve deles onde convém”7. A suficiência poética do psicanalista, portanto, está, desde sempre, no cálculo tático e na conveniência da resposta à orientação real do nó bo que foraclui o sentido. À homofonia, poderíamos acrescenta a homonímia e o jogo interlínguas, cujo paradigma é o texto de Joyce. Diz-se que o texto de Joyce não tem sentido. Com efeito, no nível semântico, há um fracasso patente na significação. Mas, quanto ao sentido, há uma proliferação tão grande que ele perde o valor, apontando então para o ab-sens. Não se trata de modo algum de uma escrita automática. Cada frase de Joyce foi construída como uma escultura, de modo totalmente artificial e calculado. Lacan faz disso uma espécie de paradigma metodológico: passar pelo sentido, usa-lo até gastar e deslocar seu peso para o peso do real.
Ora, se a correspondência entre a linguagem e o real é da ordem do impossível, se a transmissão integral é impossível, a pergunta que não se cala é qual a resposta ética do psicanalista quando o destino da mensagem passa a ser o ab-sens da relação sexual humana, tomada pelas palavras? Essa é a questão clínica e ética essencial: a psicanálise não visa tanto a verdade por traz do que isso quer dizer mas, antes, o fato de “que se diga”. Assim, borra-se a diferença entre a verdade e a escroqueria. Mas, atenção: essa despretensão da verdade não justifica em absoluto um relativismo da desconstrução, já que as “verdades mentirosas” apontam todas para o real de que o gozo é a castração. Eis a ousadia clínica e ética que a Psicanálise oferece: A aposta no bem dizer como resposta do psicanalista frente ao impossível de dizer tudo é o que se espera da clínica do passe. Nas palavras de Seprum: “Só o artifício de um relato que se possa controlar conseguirá transmitir parcialmente a verdade do testemunho”.8 A construção de um artifício, emprestar a materialidade da letra ao testemunho não é, portanto, algo espontâneo e exige um desejo decisão, lá onde não há Outro que responda, nem sujeito que corresponda. Lá onde não há carteiro da verdade há, entretanto algo que a letra/carta carrega: “A borda do furo no saber, não é isso que a letra desenha?”9
Estamos, em nossa Escola, enfrentando o desafio de responder à questão sobre quais as conseqüências de sustentar essa aposta, dando voz ao testemunho, amplificando nossos sussurros na Polis, sem nos resignarmos ao “mutismo aflito”10, como tão bem ilustra a magnífica foto da instalação de Anish Kapoor no cartaz de nosso Encontro.

1 Baudelaire (1961). Les fleurs du mal. Paris, Librairie Marcel Didier.
2 Devo essa observação e a referência a esse poema a Sílmia Sobreira.
3 Lacan, Nota sobre a criança. (1969) In: Outros Escritos.
4 Lacan, O Seminário – livro 17 O avesso da psicanálise.
5 LACAN, J. O Aturdito. In Outros Escritos, p.492
6 LACAN, J. O Aturdito. In op. Cit. p. 479
7 LACAN, J. O Aturdito. In op. Cit. p. 493.
8 SEPRUM, J. A Escrita ou a vida. São Paulo, Companhia da Letras, p. 22
9 LACAN, J. Lituraterra. In op.Cit.
10 SOLER, C. As condições do ato, como reconhecê-las? In: Wunsh n. 8